Open-access Negacionismo epistêmico

RESUMO

A ideia, aparentemente trivial, de que há circunstâncias em que o exercício da lei não pode prescindir da opinião dos especialistas é alvo de críticas contundentes há pelo menos 150 anos. O “negacionismo epistêmico” se faz presente sempre que se critica essa ideia sob a alegação de que existem atributos intrínsecos à ciência que a tornam inócua quando acionada para ajudar na solução de disputas judiciais. O que se nega, nesse caso, não é necessariamente o valor epistêmico da ciência, mas a possibilidade de este efetivamente se fazer valer quando se conta com ele para a obtenção de respostas que, em princípio, somente a ciência pode oferecer. Como pode essa modalidade especial de negacionismo irromper no debate público e, uma vez presente, como ela se afigura? São essas as perguntas que me movem neste ensaio.

PALAVRAS-CHAVE:
Negacionismo epistêmico; Lei; Especialistas; Imposturas científicas; Daubert

ABSTRACT

The apparently trivial idea that there are circumstances in which the exercise of the law cannot disregard the opinion of experts has been the target of severe criticism for at least 150 years. What I call “epistemic negationism” is something that becomes apparent whenever this idea is criticized on the grounds that there are attributes intrinsic to science that render it innocuous when used as an aid in the resolution of legal disputes. What is denied, in this case, is not necessarily the epistemic value of science, but the possibility of it effectively being useful when one counts on it to obtain answers that, in principle, only science can offer. How can this special type of negationism come up in the public debate and, once present, what does it look like?

KEYWORDS:
Epistemic negationism; Law; Expert knowledge; Junk science; Daubert

Ninguém há de negar que a lei deve, de alguma forma, fazer uso do conhecimento especializado sempre que este puder ajudar na solução de disputas. A única pergunta é: como fazê-lo da melhor maneira possível? (Hand, 1901, p.40)

No remoto ano de 1901, um juiz chamado Learned Hand se fez essa pergunta para discutir a pertinência de uma resposta que pode ser expressa em termos muito simples: “ouvindo-se a opinião dos especialistas”. Há quase dois séculos essa resposta é objeto das mais contundentes objeções e, da mesma forma, há quase dois séculos ela se mantém soberana. Isso sugere que a admissão da opinião de especialistas é uma prática jurídica que não pode deixar de existir, mas, ao mesmo tempo, não pode deixar de ser um alvo permanente da alegação de que não deveria existir. Dificilmente uma prática que encerra um paradoxo de tal natureza poderia deixar de ter alguma implicação digna de nota. Neste ensaio eu me ocupo de uma implicação cuja natureza não é jurídica, mas epistemológica, a saber, o surgimento de um tipo especial de negacionismo que, por falta de melhor nome, vou chamar de “epistêmico”.

Quando um juiz recorre à opinião dos especialistas, seu objetivo é obter respostas que, supostamente, não poderiam ser obtidas de outra forma. Afinal, quem mais, senão um especialista, pode esclarecer se o uso de um medicamento para enjôo durante a gravidez pode provocar o nascimento de bebês com deformações, ou se a construção de uma barragem nas proximidades de um porto pode fazê-lo desmoronar? O negacionismo epistêmico se faz presente sempre que se sugere existir algum atributo intrínseco à ciência que a torna inócua quando se trata de esclarecer dúvidas de tal natureza. Nesse sentido, o que ele nega não é, necessariamente, o valor epistêmico da ciência, mas a possibilidade de esse efetivamente se fazer valer quando se conta com ele para a obtenção de respostas que, em princípio, somente a ciência pode oferecer. Como pode essa modalidade especial de negacionismo irromper no debate público e, uma vez presente, como ela se afigura? São estas as perguntas que me movem neste ensaio.

1

A construção de uma barragem nas proximidades de um porto natural pode fazê-lo desmoronar? Não é de todo um exagero afirmar que foi essa a pergunta que deu início ao debate sobre se é ou não apropriado ouvir a opinião dos especialistas no tribunal.1 Ela foi levada a um juiz em 1782, ano em que desmoronou parte do porto natural de uma cidade inglesa chamada Wells-next-the-Sea. Alguns comerciantes locais atribuíram o desmoronamento à erosão causada por uma barragem que havia sido construída nas imediações do porto havia vinte anos. Puseram-se, então, a demolir o muro de contenção da barragem sob a alegação de que esse era o único meio de manter o que havia restado do porto a salvo de novos desmoronamentos. Eles tinham ou não razão? Para decidir, o juiz recorreu à opinião de um engenheiro que nada sabia sobre aquele porto em particular, nem sobre a barragem que foi destruída, mas, supostamente, tinha o “conhecimento teórico” a respeito dos fatores que, em tese, poderiam ter causado o desmoronamento. Naquelas circunstâncias, esse “conhecimento teórico” era tudo o que importava ao juiz. E assim se fez: do alto da sua condição de “especialista”, o engenheiro argumentou que, à luz dos princípios da hidrodinâmica, a construção da barragem poderia ter tido, em tese, algum impacto sobre o porto natural, mas não o suficiente para causar a erosão que o levou a desmoronar. Em face dessa alegação, o juiz proferiu sua sentença2 e, quase cinquenta anos mais tarde, em 1831, esse modo de proceder foi institucionalizado ao ser citado como o modelo a ser seguido para a solução de uma disputa judicial de natureza semelhante.3

Mesmo institucionalizado, entretanto, o ato de recorrer à opinião de especialistas nunca deixou de ser um alvo de críticas contundentes. Consideremos, por exemplo, os termos por meio dos quais, no remoto ano de 1858, um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos pronunciou-se a respeito:

A experiência tem mostrado que opiniões opostas de pessoas que professam ser especialistas podem ser obtidas em qualquer quantidade e muitas vezes ocorre que não apenas muitos dias, mas até semanas, são consumidos em interrogatórios para testar a habilidade ou o conhecimento de tais testemunhas e a correção de suas opiniões, desperdiçando tempo e cansando a paciência tanto do juiz quanto do júri, e confundindo, em vez de esclarecer, as questões que estão sob investigação.4

De acordo com esse excerto, o testemunho de um especialista só poderia ser admitido como prova no tribunal se houvesse meios de averiguar seu conhecimento e a “correção de suas opiniões”. Acontece, entretanto, que quando um especialista comparece a um tribunal, é exatamente para se pronunciar a respeito de assuntos sobre os quais nem o juiz nem os jurados são versados. Como, então, esses podem averiguar, seja a expertise do primeiro, seja a correção de suas opiniões? A resposta mais bem aceita é, simplesmente, a de que não podem. Mas, se é assim, que condições precisariam ser satisfeitas, ou efetivamente o têm sido, para que essas opiniões possam ser aceitas como provas no tribunal?

Há duas respostas canônicas (às quais retornarei na terceira seção): a que surgiu em 1923, no rastro de um caso que ficou conhecido como “Freye”, e a que surgiu setenta anos mais tarde, em 1993, no rastro de um caso que ficou conhecido como “Daubert”, o qual subverteu a “regra de Freye”.5 Essa última é descrita de forma cristalina na passagem abaixo, reproduzida de um artigo publicado em 1990:

Consideremos a experiência Bendectin. Por 27 anos, a Merrell-Dow Pharmaceuticals fabricou e vendeu Bendectin, uma droga anti-náusea matinal usada em 33 milhões de gestações. Mas subitamente apareceu, na última década, um grande número de queixosos culpando a droga por causar deformações congênitas. O consenso na comunidade científica é mais sólido do que nunca: Bendectin não causa deformações congênitas. Sob uma aplicação rigorosa da regra de Frye, segundo a qual os especialistas são admitidos no tribunal apenas se seu testemunho for baseado em teorias ou tecnologias já aceitas como válidas entre os demais cientistas no mesmo campo, nenhum desses julgamentos deveria sequer ocorrer. (Huber, 1990, p.279-80, grifos acrescentados)

Apenas três anos após essas linhas terem sido escritas, aconteceu de ser movido mais um processo contra a citada indústria farmacêutica Merrel-Dow Pharmaceuticals, e de ser movido exatamente pela mesma razão que todos os processos anteriores haviam sido movidos: a ocorrência de deformações congênitas em bebês cujas mães haviam tomado a citada droga Bendectin durante a gestação; agora, entretanto, diferentemente do que acontecera em todos os casos anteriores, o juiz da Suprema Corte violou a “regra de Freye” de modo a estabelecer um novo padrão de admissibilidade das provas no tribunal. Ele determinou que o juiz do tribunal de primeira instância ouvisse as alegações de que a droga causava deformações mesmo sabendo que o consenso da comunidade científica era o de que isso não acontecia. O impacto desse caso (conhecido simplesmente por “Daubert”,6 em atenção ao sobrenome de um dos bebês nascidos com deformações) no meio jurídico é um tema que está em destaque há trinta anos,7 mas, para os propósitos da presente discussão, é suficiente mencionar que ele impôs ao juiz uma função inédita: a de, eu diria, “guardião epistemológico”.

Um “guardião epistemológico” não precisa investigar as credenciais científicas do especialista que dá seu testemunho, nem seu domínio do assunto a respeito do qual se pronuncia, nem, tampouco, a “correção” de suas opiniões e, da mesma forma, não precisa conceder ao “consenso da comunidade científica” o benefício da palavra final; o que lhe cabe fazer é avaliar se as alegações ditas “científicas” o são de fato - ou se podem ser assim consideradas. Mas, é razoável confiar a um juiz uma tarefa de tal natureza? Por mais que sejamos tentados a responder, prontamente, que não, a resposta depende de uma outra resposta, a ser dada para uma pergunta mais fundamental: uma alegação dita “científica” pode ter a sua qualidade de “científica” aferida, isto é, ela pode se dar a conhecer como tal? Se, sob qualquer justificativa, a resposta for sim, então, por que um juiz, ou um jurado, não poderia ser alguém a quem o caráter científico de uma alegação pode se dar a conhecer? Se, por outro lado, a resposta for “não”, haveria duas maneiras de justificá-la. Uma, talvez razoável, seria argumentar que se até mesmo para um cientista, um epistemólogo, ou um filósofo da ciência, pode ser difícil saber se uma alegação que se apresenta como “científica” pode ser assim considerada, o que dizer de um leigo, como é o caso do juiz, cuja qualificação não é a mesma? A outra, nada razoável, seria argumentar que o caráter científico de uma alegação não pode se dar a conhecer, não por qualquer problema relacionado ao leigo, ao epistemólogo, ao filósofo da ciência, ou ao próprio cientista, mas por problemas relacionados à própria ciência. Essa justificativa constitui o cerne do que aqui chamei de negacionismo epistêmico.

Em termos gerais, essa modalidade de negacionismo reside na alegação de que, posto que o próprio limite entre o que é e o que não é “científico” é muitas vezes um objeto de controvérsias, então não é possível discernir o que é propriamente “científico” nas opiniões que são emitidas pelos especialistas e, em decorrência disso, o ato de recorrer à ajuda dessas opiniões, longe de trazer esclarecimentos, só faz facilitar a intrusão de imposturas científicas no debate público. Em termos mais específicos, o negacionismo epistêmico se traduz na alegação de que um leigo não tem como saber se uma opinião trazida ao debate público por um especialista tem o caráter científico que supostamente deveria ter, não por desconhecer o assunto a respeito do qual foi dada a opinião, nem tampouco por lhe faltar a formação especializada que a execução de tal tarefa possa porventura requerer, mas porque a própria ciência, por ser uma atividade que pressupõe erros, incertezas e, sobretudo, disputas sobre o que “verdadeiramente” conta como “científico”, não tem como não deixar o leigo na vulnerável situação de não saber distingui-la das imposturas científicas.

Na medida em que o negacionismo epistêmico se traduz nessa alegação, ele precisa pressupor a existência de algum meio de distinguir o conhecimento científico das imposturas que supostamente se farão passar por ele. Consideremos, por exemplo, a afirmação de que o hábito de fumar pode causar câncer. Essa afirmação constitui uma alegação científica ou uma impostura? Claro está que só é possível responder essa pergunta se existir algum meio de distinguir uma coisa da outra. Que meio seria este? Aqui reside todo o problema: se o negacionismo epistêmico pudesse responder, negacionismo ele não seria, posto que este, por definição, não pode erguer-se acima de si mesmo para refletir sobre os critérios dos quais se vale para emitir os juízos reativos que emite. Digo “juízos reativos” porque, rigorosamente falando, o negacionismo não emite juízos. Ele apenas se contrapõe a juízos já estabelecidos. Ele nada tem a dizer sobre, por exemplo, se o consumo de cigarros pode causar câncer. Mas, se já se estabeleceu o juízo de que a resposta é “sim”, então ele aparece para dizer que a resposta é “não”. Para proceder dessa forma, isto é, para ser reativo, ele precisa ser, também, parasitário e, sobretudo, destituído de qualquer metalinguagem.8 Vejamos.

Afirmar que o negacionismo é destituído de qualquer metalinguagem é afirmar que lhe é vedado admitir, sob pena de deixar de ser negacionismo, qualquer reflexão a respeito. tanto dos critérios dos quais ele próprio se vale para distinguir o que é verdadeiro do que é falso, quanto das concepções filosóficas (concepções epistemológicas e metafísicas incluídas) em cujos termos esses critérios podem ser expressos. Não podendo, por si mesmo, refletir sobre esses critérios nem sobre essas concepções, o negacionismo só pode se tornar capaz de emitir seu juízo de que não existe, não pode ser, ou não aconteceu, aquilo que existe, pode ser, ou aconteceu, se parasitar algum critério de verdade que possa ser expresso nos termos de alguma concepção filosófica, tenha essa um caráter “cético”, “dogmático”, “empirista”, “racionalista”, “nominalista”, “relativista”, “realista”, “convencionalista”, “cientificista”, “anticientificista”, “niilista”, ou o que mais possa ocorrer ao leitor.

Suponhamos, por exemplo, que o juízo reativo que um negacionista queira emitir é o de que não é verdade que o hábito de fumar cigarros pode causar câncer. Para fazê-lo, ele precisa se valer de algum critério de verdade. De qual seria? De qualquer um que ele possa tomar como seu, isto é, que ele possa parasitar, não importa os termos nos quais esse critério possa ser expresso. Com efeito, para um negacionista tanto faz se o critério de verdade do qual se vale seja expresso nos termos de uma concepção racionalista, relativista, realista, ou de qualquer outra natureza, do conhecimento científico. Se ele parasitar, por exemplo, a concepção racionalista, ele pode negar o juízo já estabelecido de que o hábito de fumar pode causar câncer sob a alegação de que o conhecimento científico não admite dogmas; se parasitar a concepção relativista, ele pode negar esse juízo sob a alegação de que o conhecimento científico é indissociável do contexto social em que foi produzido, e assim por diante. Nesse sentido, se o juízo reativo que ele quiser emitir for, como ocorre no caso do negacionismo epistêmico, o de que a ciência, por sua própria natureza, não pode se dar a conhecer como tal quando é chamada a intervir no debate público, então ele poderá parasitar, dentre outros, um critério de verdade que pode ser expresso nos seguintes termos: “a verdade sobre a ciência reside naquilo que se pode observar a respeito do modo como os próprios cientistas decidem sobre o que considerar científico ou não científico”. Conforme veremos na próxima seção, esses termos emanam de uma concepção cuja natureza não é propriamente filosófica, mas metametodológica, de caráter empirista.

Uma vez descritos, tanto o juízo reativo que o negacionismo epistêmico emite, quanto o critério (empirista) de verdade que ele precisa parasitar para fazê-lo, é chegado o momento de mostrar o modo como um espaço pode vir a ser aberto para ele no debate público e como ele pode se afigurar nesse debate.

2

Vimos, na seção precedente, que desde pelo menos o remoto ano de 1856 já se alegava ser possível acionar especialistas “em qualquer quantidade” para emitir qualquer opinião no tribunal. Passados quase dois séculos, alegações de tal natureza continuam sendo feitas, mas, agora, acrescidas de uma qualificação: dentre as opiniões que vêm a ser emitidas, incluem-se as destituídas de fundamentação científica e as já desmentidas pela ciência. A elas foi dado um nome pejorativo: “junk science”.9 Se, há quase dois séculos, a admissão do testemunho de especialistas era contestada sob a alegação de ser uma prática que fazia do tribunal um espaço para a multiplicação descontrolada de opiniões, agora, a queixa é a de que essa prática, ao viabilizar tal multiplicação de opiniões, torna os procedimentos legais e, em termos mais amplos, o debate público, perigosamente vulneráveis à perniciosa intrusão da “junk science”. Atualmente, são incontáveis os estudos (uma ínfima amostra está citada na nota 9) que discutem essa vulnerabilidade. Esses, em si mesmos, não trazem a marca do negacionismo epistêmico nem abrem espaço para a sua irrupção no debate público, mas, curiosamente, eles têm sido alvo de um tipo peculiar de crítica que faz tanto uma coisa quanto a outra. Refiro-me à crítica de que, nesses estudos

[...] está ausente qualquer explicação teórica para a triste derrota da ciência no tribunal. Por que a ciência - historicamente tão vigorosa em disputas por poder, prestígio e patrocínio - revelou-se tão fraca e indefesa quando chamada a prestar contas em processos legais? A melhor resposta que a maioria dos críticos tem oferecido é a de culpar o analfabetismo científico dos investigadores jurídicos e a corrupção dos autoproclamados especialistas que se deixam contratar para defender posições científicas sem fundamento. As críticas acadêmicas ao modo como a lei faz uso da ciência raramente fizeram esforços sérios para vincular os problemas que observaram à crescente literatura sobre a estrutura cognitiva e social da ciência, em suma, para encontrar explicações para a constatada situação difícil da ciência mainstream em uma compreensão mais profunda da forma como o conhecimento científico é produzido e difundido. (Jasanoff, 1992, p.345-6, grifos meus)

Quando se pretende explicar algo como o quadro desolador acima descrito é importante saber se é assim mesmo: “fraca e indefesa”, em “situação difícil”, e “tristemente derrotada”, que a ciência se mostra quando é chamada a intervir no debate público. Se a resposta for “sim”, então, está tudo certo, mas, se for “não”, então, a presunção de que seja “sim” e, ato contínuo, a oferta de uma “explicação teórica” para esse falso “sim”, isto é, para um fracasso epistêmico que não acontece nem aconteceu, seria a mais rematada expressão do negacionismo epistêmico. Vejamos.

Conforme vimos, o negacionismo pressupõe o ato de parasitar algum critério de verdade, expresso nos termos de alguma concepção filosófica, para a emissão de algum juízo reativo. No caso específico do negacionismo epistêmico, o critério de verdade parasitado já foi descrito (é ele, em resumo: a verdade sobre a ciência reside nas práticas observáveis que ela pressupõe), como, também, o juízo reativo que ele emite: se a ciência tem mesmo a força epistêmica que usualmente se presume que ela tem, essa se perde quando os tribunais contam com ela para esclarecer as dúvidas que tendem a aparecer nas disputas judiciais. Nota-se que esse juízo se mostra por inteiro em uma pergunta do tipo: “por que a ciência revelou-se tão fraca e indefesa quando chamada a prestar contas em processos legais?”, a menos que seja verdadeira a premissa dessa pergunta. Será verdade que a ciência se mostrou “tão fraca e indefesa” na circunstância descrita? Respondo no próximo parágrafo. Antes, entretanto, preciso mostrar qual é a concepção que proporciona os termos por meio dos quais o critério de verdade acima descrito pode ser expresso. Trata-se, conforme já adiantei, de uma concepção cuja natureza é metametodológica. Uma concepção pode ser chamada “metodológica” se faz prescrições do tipo: para que se explique tal fenômeno, é necessário que se proceda de tal maneira. E pode ser chamada “metametodológica” se a prescrição for do tipo: para que se saiba como proceder para explicar tal fenômeno, é necessário que se proceda de tal maneira. Uma vez feito esse esclarecimento, eis a concepção metametodológica em cujos termos pode ser expresso o critério de verdade que precisa ser parasitado para que o juízo reativo de que a ciência fracassa (ou perde sua força epistêmica) quando entra em cena no debate público possa ser emitido: para que se saiba como explicar o fracasso epistêmico da ciência é necessário que se recorra à ajuda de “uma crescente literatura sobre a estrutura cognitiva e social da ciência”, uma vez que essa proporciona uma “compreensão mais profunda da forma como o conhecimento científico é produzido e difundido”.

Isso dito, podemos retomar a pergunta que ficou sem resposta no parágrafo anterior: é verdade que a ciência revela-se “fraca e indefesa quando chamada a prestar contas em processos legais”, ou, em termos mais amplos, é verdade que ela perde a sua força epistêmica quando chamada a intervir no debate público? Recapitulemos que se a resposta for “sim”, então, não há problema em pretender explicar esse postulado fracasso em termos sociológicos ou em que termos for, mas, se for “não”, o simples ato de afirmar que há esse fracasso e, ato contínuo, postular a necessidade de explicá-lo nos termos que possam emanar de uma “compreensão mais profunda da forma como o conhecimento científico é produzido e difundido” já é, em si, uma clara expressão do negacionismo epistêmico. Saibamos, então, qual é a resposta. Sim ou não?

Afirmo, prontamente, que é “não” e, para justificar essa resposta, trago um exemplo que de tão bizarro poderia conduzir um desavisado à conclusão de que a resposta seria “sim”. Refiro-me a um caso que ficou conhecido como “Barefoot”.10 Em 1983, um homem chamado Thomas Barefoot foi condenado à morte por um tribunal texano, não pelo crime de que estava sendo acusado, o de assassinato, mas por sua alegada “periculosidade futura”. Essa foi postulada por dois psiquiatras ouvidos no julgamento. Ambos alegaram que o perfil de Barefoot (a quem, a propósito, jamais examinaram diretamente) era o de um “sociopata criminoso”; um típico caso em que não havia tratamento clínico, psiquiátrico, ou psicológico que pudesse ajudar. Convencido de estar diante de um inequívoco caso de “periculosidade futura”, o juiz condenou Barefoot à morte.

Se é para ilustrar o modo como o tribunal se tornou vulnerável à perniciosa intrusão da “junk science”, dificilmente haverá um exemplo melhor do que esse: uma condenação à pena de morte baseada em alegações teóricas a respeito do modo como supostamente tende a se comportar, por toda uma vida, alguém cujo perfil psiquiátrico é de tal ou qual natureza. É importante esclarecer que, nesse caso, o que seria chamado de “junk science” não seria a psiquiatria, mas a alegação de que, dado o perfil psiquiátrico do réu, não havia o que pudesse conter sua predisposição para atos violentos, resultando, daí, como foi alegado pelo juiz, que ele representava uma ameaça permanente para a sociedade.

Isso posto, duas perguntas se impõem: o que justifica atribuir a tal alegação o caráter de “junk science” (ou, o que nos permite reconhecê-la como tal), e como tal alegação, na hipótese de ser mesmo “junk science”, conseguiu se fazer passar por “boa ciência” no tribunal? Nota-se que a resposta para a segunda pergunta depende da resposta para a primeira. Com efeito, se existe algum meio de reconhecer que a referida alegação é “junk science”, e se, ainda assim, ela conseguiu se fazer passar por “boa ciência”, então, a única explicação possível para seu “êxito” é a de que faltou ao juiz (como também, eventualmente, aos jurados), ou boa-fé, ou o conhecimento especializado requerido para distinguir uma alegação científica de uma alegação “junk”.

Se, por outro lado, não há como atribuir, de forma incontroversa, o caráter de “junk science” à alegação psiquiátrica sob consideração, então, aí, sim, seria correto afirmar que essa se fez passar por ciência, não por qualquer problema relacionado ao juiz ou aos jurados, mas por causa de uma impossibilidade, intrínseca à ciência, de se fazer reconhecer como tal. Uma vez presumida essa impossibilidade, o que não vai faltar é candidato à explicação para ela. Poderia ser alegado, por exemplo, que é inevitável que a ciência, quando chamada a prestar contas no debate público, seja confundida com a “junk science” porque a própria definição dos limites entre o que merece e o que não merece ser chamado de “conhecimento científico” não se estabelece a partir de reflexões epistemológicas, mas de, digamos, disputas por espaço institucional.

Essas considerações apontam para o fato de que o negacionismo epistêmico tem uma chance: a ausência de reflexão a respeito dos sentidos em que se pode afirmar, com propriedade, que fracassos epistêmicos acontecem. Conforme pretendo mostrar, são pelo menos dois esses sentidos, e nenhum deles tem a ver com a visão negacionista de que o fracasso epistêmico da ciência se mostra no fato de vez por outras bizarrices se fazerem passar por ela quando esta é chamada a intervir no debate público. Antes de discorrer sobre isso, entretanto, preciso realçar três pontos. Primeiro: o simples ato de reconhecer que bizarrices podem se fazer passar por ciência não faz um negacionista epistêmico, mas o de extrair lições epistemológicas a partir daí, isto é, de tomar esse fato como um indicador de supostas “fragilidades” intrínsecas ao conhecimento científico, o faz. Segundo: a literatura jurídica que busca encontrar uma solução para o problema da intrusão da “junk science” no tribunal não costuma extrair lições epistemológicas do fato de existir esse problema, mas, em compensação, a literatura sociológica que a critica, o faz, ao postular que a existência desse problema exprime um fracasso epistêmico que se explica pelo próprio modo de ser da ciência. Terceiro: fracassos da ciência no debate público acontecem, e com frequência, mas esses não têm qualquer relação com o que poderia ser chamado de “o próprio modo de ser da ciência”. Com o que seria então?

Para responder essa pergunta, preciso discorrer sobre os dois sentidos em que se pode afirmar, com propriedade, que eles acontecem. Um desses sentidos é trivial, o outro não. No restante dessa seção vou me deter no sentido trivial. Na seção seguinte, ocupo-me do não trivial.

O sentido trivial é o seguinte: a ciência fracassa quando se busca, nela, respostas que ela não pode dar, seja por não estar pronta para fazê-lo, seja por estarem fora do seu alcance. Consideremos, por exemplo, o caso da Aids. Quando essa doença surgiu, estava fora do alcance da ciência combatê-la. Em um caso como esse, sim, seria justificável afirmar que a ciência se viu em uma “situação difícil”, mostrou-se “fraca e indefesa”, e amargou “tristes derrotas”. A ignorância sobre o assunto era tamanha que se supunha ser uma doença peculiar aos homossexuais. Se, naquela época, algum homossexual fosse acusado de atentar contra a saúde pública ao frequentar saunas, e se o tribunal no qual ele fosse julgado contasse com a ajuda de algum “especialista” para solucionar o caso, haveria uma chance de a opinião desse especialista levar o juiz e/ou os jurados à conclusão de que a acusação era procedente. Caso algo dessa natureza viesse a acontecer (se é que não aconteceu!), estaríamos claramente diante de uma “triste derrota” da ciência, mas não seria uma derrota “no tribunal” nem, em termos mais amplos, no “debate público”. A derrota não estaria consubstanciada no resultado de uma sentença, mas no fato, em si mesmo, de a ciência não ter força para explicar o que estava acontecendo. Não há lição epistemológica a ser extraída de uma hipotética derrota como esta (uma lição como, por exemplo, a de que é inócuo refletir sobre os meios de distinguir o conhecimento científico do não científico), exceto a de que o conhecimento científico pode não estar pronto para ajudar quando é chamado a intervir no debate público. Admitir que há circunstâncias em que a ciência ainda não adquiriu, ou que pode acontecer de nem vir a adquirir, a força epistêmica que dela se espera, nada tem a ver, entretanto, com o juízo reativo negacionista de que essa força, caso exista, se perde quando a ciência é acionada fora da comunidade científica.

Nos marcos desse juízo, seria uma ingenuidade imaginar, como o fazem os juristas, que seja possível distinguir a ciência da “junk science” de modo a manter o tribunal a salvo da intrusão desta última, tanto quanto seria uma ingenuidade presumir, como o sugere, por exemplo, a socióloga Sheila Jasanoff (1992, p.345), que tal intrusão ocorre em razão de um (corrigível) “analfabetismo científico dos investigadores jurídicos” aliado a uma (combatível) “corrupção dos autoproclamados especialistas que se deixam contratar para defender posições científicas sem fundamento”.

É o bastante para o sentido trivial em que se pode afirmar que a ciência tem amargado “tristes derrotas” - ou, em termos mais técnicos, falhado em fazer valer sua força epistêmica. Vejamos, agora, o sentido não trivial.

3

O sentido não trivial decorre do paradoxo, a que aludi na primeira seção, de que só faz sentido convidar um especialista para depor no tribunal se for para ele emitir opiniões cuja pertinência não pode ser avaliada por aqueles que o convidam. Reconsideremos, por exemplo, o caso em que se discutiu se a construção de uma barragem provocou ou não a erosão que fez um porto desmoronar. Para obter a resposta, o juiz solicitou que um engenheiro se pronunciasse sobre o assunto e este asseverou que à luz dos princípios da hidrodinâmica a resposta seria “não”. O juiz, então, baseou-se nessa opinião para proferir sua sentença mesmo sem estar em condição de avaliar se esta era procedente. Isso significa que, nesse caso, não foi propriamente a ciência que interveio, mas um substituto: as (supostas) credenciais científicas do especialista que deu seu testemunho.

Quando se aplica a “regra de Freye”, a que também fiz referência na primeira seção, mais uma vez não é a ciência propriamente que intervém, mas um outro substituto: a “aceitação geral” de uma teoria - ou o “consenso da comunidade científica”. Essa substituição transparece com excepcional nitidez na afirmação de Peter Huber (o jurista que, na década de 1990, deu início à discussão sobre como manter o tribunal a salvo da intrusão da “junk science”) de que os julgamentos referentes ao nascimento de bebês com deformações congênitas, ocorridos às dezenas, na década de 1980, sequer deveriam ter acontecido porque “o consenso na comunidade científica” era “mais sólido do que nunca: Bendectin não causa deformações congênitas” (Huber, 1990, p.280).

No caso Barefoot, que se notabilizou por sua excentricidade,11 mais uma vez não foi a ciência propriamente que interveio, mas vários substitutos por meio dos quais ela se fez “representar” - os quais serão apresentados ao leitor a partir do próximo parágrafo. Antes, entretanto, devo mencionar que os três exemplos reconsiderados remetem diretamente ao sentido não trivial em que se pode afirmar que fracassos epistêmicos acontecem: é apropriado dizer que estes acontecem, não quando imposturas conseguem se fazer passar por ciência, mas quando esta deixa de atuar por si mesma em circunstâncias nas quais, em tese, poderia fazê-lo. Posto de outra forma, pode-se dizer que fracassos epistêmicos acontecem quando a ciência, mesmo estando em condição de atuar diretamente, se faz “representar” por algum substituto. Posto que tanto essa condição de atuar diretamente quanto o ato de se fazer representar por substitutos se mostram particularmente visíveis no “caso Barefoot”, vou me deter nele nos próximos parágrafos.

Na verdade, não propriamente no caso, mas em um “parecer divergente”, emitido por um “Justice”, título honorífico concedido aos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos.12 Nesse parecer, as descrições de três circunstâncias merecem destaque. Em todas elas, o foco é o conceito de “periculosidade futura”, já apresentado ao leitor. São elas:

  • 1) o momento em que os dois psiquiatras que opinaram sobre o “caso Barefoot” descrevem suas respectivas experiências em fazer “avaliações criminais” e sugerem, cada qual ao seu modo, que essas “experiências” os tornaram aptos a prever a “periculosidade futura” de um indivíduo. Nesta circunstância, a ciência se faz “representar” por “experiências pessoais”, observações supostamente qualificadas, quantificações e classificações por meio de escalas.

  • 2) o momento em que Justice Blackmun, o autor do “parecer divergente”, critica a ideia de “periculosidade futura”. Nessa circunstância, veremos, a ciência se faz “representar” por opiniões institucionalmente autorizadas e cálculos de probabilidades.

  • 3) o momento em que o advogado de defesa rejeita a ideia de “periculosidade futura” e os psiquiatras reagem, cada qual ao seu modo, em favor dela. Esse momento merece destaque por exemplificar, não o recurso a algum substituto, mas uma excelente oportunidade para a ciência intervir por si mesma, embora essa oportunidade tenha sido perdida.

Os dois primeiros substitutos mencionados, recapitulando, a experiência em realizar “avaliações criminais” e as observações por meio das quais a precisão dessas avaliações é supostamente confirmada, nos são apresentados quando o “parecer divergente” descreve a atuação de um dos psiquiatras protagonistas do caso Barefoot, o Dr. Holbrook.

O Dr. Holbrook detalhou detalhadamente seu treinamento e experiência como psiquiatra, que incluía uma posição como chefe de serviços psiquiátricos no Departamento de Correções do Texas. Ele explicou que já havia realizado muitas “avaliações criminais” e que, posteriormente, assumiu o cargo no Departamento de Correções para observar o comportamento daqueles que ele havia avaliado de modo a poder “ter certeza de que as opiniões que tinha emitido por ocasião do julgamento e do pré-julgamento eram acuradas”. Ele então informou ao júri que estava “ao seu alcance, como médico psiquiátrico, prever a periculosidade futura de um indivíduo dentro de uma certeza médica razoável ...”13 (grifos acrescentados)

O terceiro substituto que mencionei, as quantificações, aparece no testemunho do Dr. Grigson, o outro psiquiatra protagonista do caso Barefoot.

O Dr. Grigson também detalhou seu treinamento e experiência médica, que, segundo ele, incluiu o exame de “entre trinta e quarenta mil indivíduos”, incluindo 8.000 acusados ​​de crimes e pelo menos 300 acusados ​​de assassinato. Ele afirmou que, com informações suficientes, seria capaz de “dar uma opinião médica com razoável certeza psiquiátrica quanto à composição psicológica ou psiquiátrica de um indivíduo”, e que essa habilidade era “especial para o campo da psiquiatria, e não para o leigo...”14

No testemunho desse mesmo psiquiatra aparece o quarto substituto a que fiz menção: a classificação em uma escala. Com efeito, para o Dr. Grigson: “Barefoot poderia ser diagnosticado, ‘com razoável certeza psiquiátrica’, como um indivíduo com ‘um distúrbio de personalidade sociopata bastante clássico e típico’”.15 O referido psiquiatra “classificou Barefoot na “categoria mais grave” de sociopatas (em uma escala de um a dez, Barefoot estava “acima de dez”)”.16

Cálculos de probabilidades e opiniões institucionalmente autorizadas aparecem como substitutos da ciência em uma passagem como esta:

A American Psychiatric Association (APA), participando neste caso como amicus curiae, nos informa que “[a] falta de confiabilidade das previsões psiquiátricas de periculosidade futura a longo prazo já é um fato estabelecido dentro da profissão”. A melhor estimativa da APA é que duas em cada três previsões de violência futura de longo prazo feitas por psiquiatras estão erradas. [...] A minuta do Relatório da APA da Força-Tarefa sobre o Papel da Psiquiatria no Processo de Condenação (1983) afirma que “considerável evidência foi acumulada até agora para demonstrar que a previsão de longo prazo por psiquiatras de violência futura é um processo extremamente impreciso.” John Monahan, reconhecido como “o principal pensador nesta questão” [...] concluiu que “a “melhor” pesquisa clínica atualmente existente indica que psiquiatras e psicólogos são precisos em não mais de uma de três previsões de comportamento violento”, mesmo entre populações de indivíduos com doenças mentais e que cometeram violência no passado.17

Deixei, para o fim, a passagem que me parece a mais importante por ilustrar, exemplarmente, não algum substituto, mas uma oportunidade perdida de a ciência intervir diretamente, isto é, de atuar sem se fazer “representar” por algum substituto. Vejamos:

No interrogatório, o advogado de defesa perguntou aos psiquiatras o que teriam a dizer sobre os estudos que demonstram que as previsões dos psiquiatras sobre a periculosidade futura são intrinsecamente não confiáveis. O doutor Holbrook indicou sua familiaridade com muitos desses estudos, mas afirmou que discordava de suas conclusões. 18 (grifos acrescentados)

Esse é, em todo o processo, o momento em que de forma mais clara foi dada à ciência a oportunidade de intervir por si própria e não por meio de algum substituto. Quando o referido Dr. Holbrook se disse familiarizado com os estudos que criticavam a ideia de “periculosidade futura”, mas discordava de suas conclusões, ele deu a “deixa” para que a ciência pudesse intervir por si própria. Isso não aconteceu, mas poderia ter acontecido se o caso Barefoot não tivesse sido anterior, mas posterior, ao “caso Daubert”, ocorrido em 1993, a que fiz referência na primeira seção.

Na primeira seção insinuei, sem me estender sobre o tema, que o “caso Daubert” significou uma reviravolta na discussão a respeito da admissibilidade de provas científicas no tribunal. Pois, agora, posso dizer exatamente em que consiste essa reviravolta: em atuar de modo a impedir que oportunidades como a acima descrita se percam. Se um especialista se diz familiarizado com alguma literatura científica, e acrescenta que discorda das conclusões a que chegou essa literatura, que oportunidade espetacular para a ciência entrar em cena! Para que isso aconteça, basta que se faça o que não foi feito no caso Barefoot: perguntar ao depoente em que ele se baseia para discordar das referidas conclusões, posto que uma pergunta como esta não pode ser respondida com a ajuda de substitutos. Não soaria apropriado um especialista argumentar que sua discordância se baseia no que aprendeu com a própria “experiência”, ou pelo que foi dito por algum colega, por mais formidáveis que pareçam suas credenciais científicas. Depois do “caso Daubert”, tudo isso poderia ser descartado como “junk science”.

O “caso Daubert” se notabilizou exatamente por restringir o espaço para a atuação de substitutos. Ele o fez ao admitir que os especialistas que se opunham à tese, então consensual, de que a droga Bendectin não causava deformações congênitas, explicassem as razões de suas discordâncias. Uma das razões alegadas foi a de que experimentos com animais mostravam o efeito deletério da droga. E aos juízes dos tribunais inferiores foi confiada a missão de avaliar se as alegações desses especialistas eram ou não “junk science”. Para tanto, indagaram aos especialistas não só sobre como chegaram às próprias conclusões, mas, também, sobre os testes a que suas alegações controvertidas já tinham sido, ou poderiam vir a ser, submetidas.

Os primeiros anos “pós-Daubert” (esse termo é moeda corrente na literatura jurídica) foram marcados pela expectativa de que a ciência iria, finalmente, intervir por si mesma no tribunal, e não por meio de substitutos. Tal expectativa aparece com particular nitidez na seguinte afirmação de uma jurista chamada Heid Feldman (1995, p.2): “a abordagem de Daubert reflete a abordagem científica de um modo como nunca antes se viu nos tribunais”. Passados trinta anos, a expectativa de que os juízes pudessem interrogar os especialistas de modo semelhante ao que os cientistas se interrogam mutuamente tornou-se um alvo fácil de críticas, mas essas, por mais pertinentes que se possam mostrar, não podem alterar o que foi feito pelo “caso Daubert”: tornar visível o fato de que não era a ciência, em si mesma, que se fazia presente quando os especialistas eram chamados para opinar no tribunal, mas, sim, algum substituto - a propósito, apresentei oito ao leitor, se minha contagem estiver correta. Se, até aquele momento, não era a própria ciência que intervinha, por que não dar a ela, a partir daquele mesmo momento, uma oportunidade para fazê-lo? No fim das contas, não é a outra coisa, senão dar à ciência essa oportunidade, que o “caso Daubert” se refere. Foi para isso que ele fez do juiz um “guardião” (“gatekeeper”) - na verdade, um “guardião epistemológico”. De um guardião epistemológico espera-se, sobretudo, a capacidade de manter o tribunal a salvo da intrusão da “junk science”.

4

Em 1992, um ano antes do advento do “caso Daubert”, a socióloga Sheila Jasanoff (1992) publicou um artigo sob um título que, traduzido para o português, seria: “o que os juízes deveriam saber sobre a sociologia da ciência”. Em face de tudo o que foi discutido aqui, penso que a reflexão que importa é exatamente a oposta: o que os sociólogos da ciência deveriam saber sobre os juízes? Minha resposta seria: os primeiros deveriam saber que os últimos sabem que a ciência só se sujeita a não mostrar a sua força quando se faz representar por algum substituto e, por saberem disso, têm há trinta anos procurado restringir o espaço para a ocorrência de tais substituições. Certamente há circunstâncias em que a substituição se impõe e, nesses casos, os substitutos não se equivalem. Certamente a ciência estaria muito mais “bem representada” por um substituto do tipo: “a melhor pesquisa clínica atualmente existente indica que psiquiatras e psicólogos são precisos em não mais de uma de três previsões de comportamento violento” do que por um do tipo: “a precisão de minhas avaliações sobre a periculosidade futura dos criminosos foi confirmada por minhas próprias observações do comportamento desses criminosos após terem sido avaliados”. Os juízes sabem, também, que seus esforços para restringir o espaço dos substitutos nem sempre é exitoso, mas, no que se refere a isso, agora sou eu quem digo, não há “compreensão mais profunda da forma como o conhecimento científico é produzido e difundido” que possa ajudar. Em face de tudo o que sustentei até aqui, suspeito que o conhecimento a ser adquirido por meio dessa recomendada “compreensão mais profunda” mais se presta a ser parasitado pelo negacionismo epistêmico do que a trazer alguma contribuição digna de nota para o debate a respeito dos problemas que verdadeiramente afligem a intervenção da ciência no debate público.

Referências

  • AYALA F. J.; BLACK, B. Science and the Courts. American Scientist, v.81, n.3, p.230-9, May-June 1993.
  • BERRY, H. The medical expert, junk reasoning, and junk science in personal injury litigation. Tort Trial & Insurance Practice Law Journal, v.40, n.4, p.1101-43, 2005.
  • FELDMAN, H. L. Science and Uncertainty in Mass Exposure Litigation. Law Texas Review, v.74, n.1, p.1-48, 1995.
  • GIANELLI, P. C. “Junk Science”: The Criminal Cases. The Journal of Criminal Law and Criminology, v.84, n.1, p.105-28, 1993.
  • GOLAN, T. Laws of men and laws of nature: the history of scientific evidence expert testimony in England and America. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2004.
  • HAACK, S. Trials & Tribulations: Science in the Courts. Daedalus, v.132, n.4, p.54-63, 2003.
  • HAND, L. Historical and Practical Considerations regarding Expert Testimony. Harvard Law Review, v.15, n.1, p.40-58, 1901.
  • HILBERT, J. The Disappointing History of Science in the Courtroom: Frye, Daubert, and the Ongoing Crisis of “Junk Science” in Criminal Trials. Oklahoma Law Review, v.71, p.759-81, 2019.
  • HUBER, P. Junk Science and the Jury. University of Chicago Legal Forum, Issue 1, Article 10, p.273-302, 1990.
  • _______. Galileo”s Revenge: Junk Science in the courtroom. New York: BasicBook, 1991.
  • JASANOFF, S. What judges should know about the sociology of science. Jurimetrics, v.32. n.3, p.345-59, 1992.

Notas

  • 1
    Veja-se, a respeito, Golan (2004).
  • 2
    A sentença está disponível na íntegra em: <https://dominicdesaulles.wordpress.com/2016/02/10/expert-evidence-an-early-viewfolkes-v-chad-99-e-r-686-1783-3-doug-k-b-340/>.
  • 3
    Veja-se, a respeito, a resenha de Graeme J. N. Gooday, publicada sem título em The British Journal for the History of Science (v.39, n.3, p.452-4, 2006), ao já citado livro de Tal Golan (2004).
  • 4
    Winans v. New York & Erie Railroad Co., 62 U.S. 100-101 (1858). Veja-se Hilbert (2019).
  • 5
    A “regra de Freye” é assim chamada por ter sido criada no caso Frye v United States, 293 F 1013, 1014, DC Cir 1923. Freye é o sobrenome de um réu que, em 1923, respondeu pelo crime de assassinato. Ele admitiu o crime e depois tentou voltar atrás. Diante da recusa do tribunal em aceitar a retratação, seu advogado solicitou que ele fosse submetido ao teste do polígrafo, um detector de mentiras, mas a solicitação foi recusada sob a alegação de que a tecnologia do polígrafo não tinha “aceitação geral” entre os pares. Desde então, a “aceitação geral” se tornou um padrão para a admissibilidade de provas.
  • 6
    Daubert et ux, individually and as guardians, Ad litem for Dauber et al. v. Merrel Dow Pharmaceuticals, Inc. Certiorari to the United States Court of Appeals for the Ninth Circuit, No. 92-102, Argued March 30, 1993 - Decided June 28, 1993.
  • 7
    Talvez não seja ocioso reproduzir o que foi dito sobre esse caso ainda no primeiro semestre de 1993, quando ele mal tinha ainda vindo a público: “o debate jurídico sobre a ciência chegou agora à Suprema Corte dos Estados Unidos, que, em 30 de março, ouviu argumentos orais em um caso que pode mudar a forma como todos os tribunais federais, e muitos tribunais estaduais, lidam com provas científicas. O caso Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals traz alegações de que a Bendectin, uma droga amplamente prescrita para combater o enjôo matinal durante a gravidez, causou deformações congênitas nos filhos de algumas mães que o tomaram. O caso marca a primeira vez que o tribunal superior confrontou diretamente a questão referente a que normas devem reger o uso da ciência no tribunal e concentrou os holofotes da atenção pública na falha do judiciário em desenvolver diretrizes claras e consistentes para avaliar evidências científicas. A decisão da Corte, esperada para este verão, pode acabar girando em torno de questões legais estreitas, mas provocou um amplo debate sobre como não-cientistas, como juízes, podem decidir quando defrontados com alegações científicas concorrentes” (Ayala; Black, 1993, p.230). O vaticínio contido na frase realçada, em itálicos, se cumpriu!
  • 8
    A ideia, que considero crucial, de que o negacionismo é destituído de qualquer metalinguagem foi tomada do Prof. Luiz Eduardo Soares. Tive a oportunidade de ouvi-lo se pronunciar sobre isso e resolvi explorar essa contribuição. Não sei dizer se ele, ou algum outro autor, já mencionou isso em alguma publicação. Nem sei também se a forma como desenvolvi essa ideia aqui coincide inteiramente com o que ele pensou a respeito quando a expôs verbalmente, posto que eu, diferentemente dele, não sou versado em linguística. Quanto à tese de que o negacionismo é necessariamente reativo e parasitário, isso me parece trivial, e imagino que já tenha sido de alguma forma mencionado em publicações sobre o tema.
  • 9
    Veja-se, por exemplo, Huber (1991), Giannelli (1993), Haack (2003) e Hilbert (2019).
  • 10
    Trata-se do caso: Barefoot v. Estelle, 463 U.S. 880, 916 (1983).
  • 11
    Tomei conhecimento da existência desse caso por vê-lo mencionado em Hilbert, 2019.
  • 12
    O autor do parecer é Justice Blackmun. Ele (o parecer) faz parte do processo Barefoot v. Estelle, 463 U.S. 880, 916 (1983), pg 463 U. S. 917 e seguintes. As citações que aparecerão em seguida são extraídas desse Parecer.
  • 13
    Barefoot v. Estelle, 463 U.S. 880, 916 (1983), comentários de Justice Blackmun, pg 463 U. S. 917.
  • 14
    Barefoot v. Estelle, 463 U.S. 880, 916 (1983), comentários de Justice Blackmun, pg 463 U. S. 918.
  • 15
    Ibidem.
  • 16
    Ibidem.
  • 17
    Barefoot v. Estelle, 463 U.S. 880, 916 (1983), comentários de Justice Blackmun, pg 463 U. S. 920.
  • 18
    Barefoot v. Estelle, 463 U.S. 880, 916 (1983), comentários de Justice Blackmun, pg 463 U. S. 919.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2024
  • Aceito
    19 Mar 2024
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