RESUMO
Este artigo enfatiza como as plataformas digitais apresentam riscos reais ao jornalismo e à democracia pois contribuem para sua deterioração por meio de estratégias agressivas de expansão. De caráter ensaístico e baseado em literatura especializada e na documentação de casos no Brasil e exterior, o texto sistematiza parte da convivência conturbada de dois sistemas centrais na experiência contemporânea: estruturas plataformizadas e o jornalismo tradicional, um histórico provedor social de informações. Big techs como Alphabet/Google e Meta/Facebook mostram-se determinadas a concentrar mercados e avançam sobre as principais atividades econômicas, culturais e sociais, impulsionando seus negócios para a maximização de lucros e a neutralização da concorrência, provocando danos colaterais que fragilizam formas tradicionais de convivência social e comunicação massiva. Apesar das consequências deletérias à indústria jornalística, as big techs sustentam discursos de apoio ao setor, materializados em programas de fomento, treinamento profissional e suporte empresarial. Entretanto, esses investimentos são insuficientes para minimizar os prejuízos gerados pelas próprias plataformas. Este artigo, ao final, chama a atenção para a necessidade de regular as plataformas no Brasil, fortalecendo a democracia e outros valores relevantes para a vida coletiva.
PALAVRAS-CHAVES:
Plataformas digitais; Oligopólios; Estratégias de domínio; Crise financeira; Indústria jornalística
ABSTRACT
This article emphasizes how digital platforms pose real risks to journalism and democracy as they contribute to their deterioration through aggressive expansion strategies. The article takes the form of an essay and is based on specialized literature and documentation of cases in Brazil and abroad. The text also systematizes part of the troubled coexistence of two central systems in contemporary experience: platformized structures and the traditional journalistic service, a historical social provider of information. Big tech companies such as Alphabet/Google and Meta/Facebook, for example, are determined to concentrate markets and encroach upon the main economic, cultural, and social activities, driving their businesses towards profit maximization and competition neutralization, causing collateral damage that weakens traditional forms of social coexistence and mass communication. Despite the harmful consequences for the journalism industry, big tech companies maintain supportive discourses for the sector, materialized in development programs, professional training, and business support. However, these investments are insufficient to mitigate the losses generated by the platforms themselves. At the end of the article, the argument draws attention to the need to regulate platforms, strengthening democracy and other values relevant to collective life.
KEYWORDS:
Digital platforms; Oligopolies; Dominance strategies; Financial crisis; Journalistic industry
À sombra dos monstros
Em outubro de 2024, o Facebook alcançou a marca de 3,07 bilhões de usuários com contas ativas. Na mesma época, o YouTube já acumulava 2,7 bilhões de inscritos e o Instagram, mais de 2,4 bilhões. Essas estatísticas já seriam impressionantes se vistas de forma isolada, mas ampliando a observação, têm-se as reais dimensões do gigantismo das redes sociais e das plataformas digitais que as sustentam.
Em três anos, o Facebook - que já era a maior rede do tipo no mundo à época - recebeu mais de 490 milhões de novos usuários, o equivalente a todos os habitantes de México, Rússia e Japão juntos.1 Esse crescimento de meio bilhão de pessoas se deu em plena pandemia de Covid-19 - 2020-2022 -, a despeito de alguma exaustão digital ocasionada pelo confinamento social, e de críticas cada vez mais frequentes sobre a opacidade algorítmica das plataformas.
No início de 2022, quando a epidemia global estava em curva descendente, as maiores plataformas digitais só exibiam mais musculatura ainda. O Facebook detinha uma fatia superior a 2,10 bilhões de potenciais consumidores, o que significa dizer que quase 3 em 4 usuários eram alvos constantes de anúncios e campanhas na internet. Em termos populacionais, seus usuários ativos mensais equivaleriam a mais de um terço de todas as pessoas na Terra à época (36,8%). Mais do que os habitantes de China e Índia somados. Se forem consideradas apenas as pessoas com idade suficiente para usar o Facebook (13 anos, pelo menos), a base chega a 47,1% da população mundial, e se for descontada a população da China - onde essa rede social está bloqueada -, o alcance chega a 58,8% dos sujeitos no planeta. Dados de outubro de 2024 apontam que 5,22 bilhões de pessoas utilizam redes sociais no mundo, o equivalente a 63,8% da população global.2 Em resumo: nenhum empreendimento da cultura humana teve uma adesão tão grande em tão pouco tempo. Não foram necessárias nem duas décadas completas para que abraçasse o planeta e convertesse uma fração colossal de indivíduos em usuários de seus sistemas de comunicação e serviços derivados.
YouTube e Instagram reforçam estatísticas astronômicas. O primeiro surgiu em 2005 como um repositório digital de vídeos e se converteu na segunda maior rede social da internet, com taxas de penetração superiores a 90% em países distintos como Emirados Árabes Unidos (94,1%), Israel (93,2%) e Reino Unido (90,4%). No mundo todo, a taxa fica bem longe desses níveis, mas passa de 38%,3 o que significa dizer que chega a mais de um terço dos usuários, desempenho muito superior a concorrentes como Vimeo e DTube. Para além de sua popularização, o YouTube se destaca também em estatísticas técnicas como o volume de upload de arquivos - a cada minuto, ao menos 500 horas de vídeos são subidos à plataforma - e quantidade de conteúdos: um dos segmentos mais ativos do site - o de games - reúne mais de 250 milhões de vídeos.
Instagram é a quarta rede social da internet em usuários. Para alguns, é a terceira, se se considerar que o WhatsApp é originariamente um serviço de mensageria instantânea e isso impediria sua classificação entre as redes. Com 2,4 bilhões de contas ativas acumuladas em pouco mais de uma década de existência, o Instagram não é só um fenômeno de agregação de pessoas, mas também um atraente complexo de vitrines para a publicidade e o consumo online: no início de 2022, ainda durante a pandemia, meio bilhão de indivíduos acessavam o recurso Stories todos os dias, 80% das contas eram de uso pessoal, e 60% dos usuários acessavam a plataforma para encontrar novos produtos. Em 2021, 90% das maiores marcas mantinham perfis profissionais no Instagram, e 98% das empresas de moda e vestuário buscavam visibilidade nessa rede.4
Ubiquidade, acelerada popularização e ramificação capilar fazem das redes sociais fenômenos culturais inalcançáveis. No campo da economia, a presença das empresas que sustentam essas plataformas transformou o capitalismo subvertendo regras pretensamente imutáveis. Até o final do século XX, a lista das maiores empresas do mundo era liderada por indústrias de base e de produtos de alto valor agregado. Atualmente, a lista traz no topo players que estruturam seus negócios em megabytes, dados e serviços, não fabricando objetos, mas oferecendo plataformas que atraem e aproximam públicos e organizações para a realização de transações comunicacionais e financeiras (Whitaker, 2019). Em junho de 2021, o Facebook tornou-se a quinta empresa a atingir a marca de 1 trilhão de dólares em valor de mercad.5 Antes dela, outras cinco big techs já tinham chegado lá: Apple, Amazon, Microsoft e Alphabet/Google.
Tentáculos e ventosas
Comparar big techs a monstros ameaçadores é uma metáfora desgastada, mas incontornável. A presença desses conglomerados digitais nos mercados em que atuam é sempre superlativa, cercada por cifras impressionantes e apetite infinito. Por isso, não basta que dominem seus segmentos; o porte avantajado e a musculatura incomparável fazem com que seus movimentos esmaguem a concorrência, mesmo que neguem tal atitude. O resultado, muitas vezes, é um cenário de terra arrasada onde apenas um provedor de serviços tem condições de operar e atender a contento às demandas dos públicos. Em junho de 2023, por exemplo, o Google já tinha um domínio avassalador no mercado global de buscadores na internet: o motor da Alphabet tinha um market share de 90,68%, e seu concorrente mais próximo, o Bing, tinha 3,23%.6 Com um cenário monopolizado assim, que companhia se aventuraria a apresentar uma solução alternativa?
Tais estratégias de dominação costumam ignorar fronteiras geográficas, linguísticas, culturais e políticas (Moore; Tambini, 2018). Por isso, as big techs ultrapasam seus segmentos originais. O motor de buscas criado para organizar todo o conhecimento na web esticou seus tentáculos para o maior repositório de vídeos do planeta, mesmo que ele fosse deficitário à época. Em outubro de 2006, o YouTube foi adquirido por Google por US$ 1,65 bilhão, transação que mostrou o alcance da visão de futuro da então emergente big tech. Os mais desavisados se perguntaram por que despejar tanto dinheiro num empreendimento que só consumia investimentos em tecnologia. A resposta foi dada em poucos anos: o consumo de vídeos digitais cresceu em escala exponencial, mostrando-se altamente rentável. Comprar o YouTube “na baixa” foi uma estratégia para impedir que outro player descobrisse como extrair lucros de vídeos amadores, produzidos por pessoas comuns. Em 2019, o YouTube comercializou US$ 15,1 bilhões em publicidade, quase um décimo da receita total da Alphabet. Foi um faturamento 35,8% maior que o ano anterior. Em 2023, dados do segundo trimestre, mostraram que o YouTube e o serviço de armazenamento em nuvem já eram os principais responsáveis pelos resultados bilionários da big tech.7
Em 2008, os sinais pareciam claros de que a internet se expandia rapidamente podendo se converter em uma tessitura planetária inédita. Google entrou na disputa por espaço no mercado de browsers e lançou o Chrome, prometendo integração entre seus diversos serviços, estabilidade operacional e “otimização da experiência”. Dez anos depois, ele seria hegemônico entre os usuários, respondendo por dois terços do mercado de navegadores.
O ano de 2008 teve outro lance de vencedor da Google na economia digital. Farejando que a internet saltaria dos computadores de mesa para os telefones celulares, a empresa liderou um consórcio que desenvolveria o Android, sistema operacional para aparelhos leves, pequenos, portáteis e pessoais. A ubiquidade levou à mobilidade, e as plataformas encontraram outra forma de disseminação de sua presença online. Os celulares evoluíram para se tornar smartphones, com processadores mais robustos e rápidos, telas sensíveis ao toque e recursos tecnológicos adicionais. O Android ajudou a expandir o acesso à internet por essas vias e foi mais uma amostra da grande capacidade preditiva da Google e do seu alinhamento com outras indústrias ascendentes, como a da telefonia integrada à informática. Em poucos anos, o Android tornou-se o sistema operacional para dispositivos móveis mais popular do mundo, e em 2017, deixou para trás até mesmo os desenvolvidos para computadores.
Nos últimos anos, a concentração de mercados esteve sincronizada à inovação de alguns poucos e à descoberta de nichos de exploração de consumo (Petit, 2020).
A Amazon é líder em ramos como computação em nuvem e varejo, vendendo de livros a helicópteros em sua plataforma de e-comerce. Também opera com agressividade em inteligência artificial, na indústria aeroespacial e em streaming de áudio e vídeo.
O Facebook não se contenta em ser a maior rede social do mundo, e por isso anexou outras plataformas do ramo: Instagram, em 2012, e WhatsApp, em 2014, respectivamente a quarta e a terceira redes em números de usuários.8
A Microsoft fabrica produtos como os consoles de videogame XBox e smartphones - a partir da aquisição da Nokia em 2013 -, desenvolve softwares como os populares PowerPoint e Excel, conecta videochamadas pelo Skype, atua nas redes sociais pelo Linkedin, permite buscas na internet com o Bing, e vende armazenamento de dados em nuvem com o OneDrive.
A Apple segue receita de sucesso semelhante à Microsoft, atuando nas duas pontas do negócio de tecnologia: fabrica aparelhos eletrônicos - computadores, smartphones, relógios e tablets - e abastece mercados com softwares que fazem esses mesmos aparelhos funcionarem - sistemas operacionais para dispositivos fixos e móveis, reprodutores de áudio e vídeo, ferramentas de produção musical e de vídeo profissional, browser de internet, entre outros.
Para além do sucesso das últimas décadas, Alphabet/Google, Apple, Meta/Facebook, Amazon e Microsoft tornaram-se também as expressões mais visíveis do capitalismo contemporâneo. Suas iniciais formaram um acrônimo - Gafam9 - que representa superacumulação de capital, práticas anticompetitivas, exploração de mão-de-obra em países periféricos, lobbies políticos, desrespeito de leis nacionais, manipulação de índices e preços, controle e cerceamento da inovação tecnológica, estrangulamento de mercados, uso de dados pessoais de clientes para comercialização de anúncios... São companhias distintas em suas trajetórias, mas assemelhadas nas dimensões transnacionais e na influência global sobre o comportamento da produção e do consumo. Também se aproximam no que se refere às críticas recebidas de órgãos reguladores, sociedades de consumidores, especialistas e parcelas do setor produtivo.
No final da década de 1990, quando já era a principal companhia de softwares do mundo, a Microsoft enfrentou na justiça dos Estados Unidos acusações de monopólio e práticas de concorrência desleal. Precisou negociar acordos para não sofrer maiores punições, mas a história mostrou que o seu apetite por mercados não foi saciado. Na Europa, países como a França aprovaram, na segunda década deste século, leis mais rígidas para combater práticas de dumping, como as imputadas à Amazon, por exemplo. A desconfiança sobre experimentos emocionais desconhecidos e não autorizados pelos usuários, e o escândalo de manipulação da opinião pública da Cambridge Analytica ainda ressoam negativamente sobre o Facebook (Kaiser, 2020). Possíveis interferências em campanhas eleitorais com a disseminação massiva de fake news e discursos de erosão das instituições democráticas também recaem sobre as principais plataformas de redes sociais (Giblin; Doctorow, 2022). Empresas de desenvolvimento de softwares e sistemas queixam-se em todas as partes da atuação ostensiva e dissimulada da Alphabet que reduz espaços no mercado para a criatividade e a inovação tecnológica de pequenos players (Ezrachi; Stucke, 2022). A Apple, por sua vez, é alvo de duas críticas recorrentes: a adoção de uma arquitetura fechada para seus hardwares - que obriga usuários a utilizar softwares da própria empresa ou de seus prepostos - e a tática da obsolescência programada - que leva consumidores a trocar seus equipamentos em intervalos mais curtos, seja por durabilidade comprometida ou pelo lançamento de versões mais novas, incompatíveis com as anteriores.
Em contextos de acirrada competição, é compreensível que grandes players encontrem resistência e desconfiança de seus concorrentes, públicos e governos. As estratégias de domínio de mercados assumem formas variadas, que vão das mais agressivas - como a redução drástica de preços e a obrigatoriedade de contratação de serviços conjugados - a constrangimentos mais sutis que ameaçam a existência dos menores competidores - como o fechamento do circuito de inovação. As big techs não se restringem às cinco companhias da Gafam, e podem ser reconhecidas em empreendimentos plataformizados de segmentos variados como transporte (Uber, Cabify, por exemplo), hospedagem (AirBnB, Booking, por exemplo), alimentação (iFood, UberEats, por exemplo), e entretenimento (Netflix, Apple Music, por exemplo). Na China e mercados asiáticos, são exemplos de big techs: Alibaba (varejo e comércio eletrônico, pagamentos online, computação em nuvem, motor de busca), Tencent (a maior empresa de games do mundo e a proprietária do WeChat, o maior serviço de mensageria e serviços online chinês), Didi Chuxing (transporte de passageiros por aplicativo, e outros serviços de tecnologia) e Baidu (motor de buscas, antivírus, armazenamento em nuvem...).
Com altos investimentos em tecnologia e apoiadas em infraestruturas custosas para instalação e manutenção, as big techs jogam um jogo para poucos jogadores. Em linguagem econômica, são arranjos orientados à criação de monopólios ou oligopólios e esta condição inviabiliza contextos democráticos, onde devem vigorar arenas plurais e debates públicos, e onde deve ser respeitada a necessidade de escrutínio social, por exemplo.
Na prática, as big techs dedicam seus esforços para construir infraestruturas digitais de provimento de serviços, de intermediação de negócios, ou de aproximação de fornecedores de produtos e públicos interessados (Parker et al., 2016; Srnicek, 2017). Diferentes das indústrias convencionais, não fabricam produtos ou bens duráveis. Nem sempre são executoras de serviços, mas transacionam pretensas soluções para problemas de pessoas e organizações.
Permanentemente insatisfeitos, esses conglomerados operam em escalas transnacionais e preocupam-se, sobretudo, com a atração de grandes contingentes populacionais para a formação de plantas massivas de clientes. São essas bases de potenciais consumidores que tornam as big techs tão capitalisticamente atraentes. Mas é importante notar que esses indivíduos não se limitam a consumir; também são gentilmente convocados a produzir signos e linguagens que alimentam os fornos de uma “superindústria do imaginário”, expressão que ilustra como o “capitalismo se apossou de tal modo da ordem do Imaginário que dela se tornou prisioneiro - parasita e fonte geradora” (Bucci, 2021, p.28). Vinci (2022) alerta para o fato de que as plataformas são uma ameaça à democracia, reforçando o que Hawley (2021) chamou de “tirania das big techs”. Howard (2022), por sua vez, conclui que, nos moldes como são oferecidas, tais tecnologias tornaram-se tóxicas devido ao que produzem sobre o comportamento humano. Aliás, Fisher (2022) oferece um farto inventário de efeitos nocivos derivados da permanência e uso contínuo das mídias sociais, com desdobramentos individuais e coletivos, em países distintos, mas com prejuízos quase sempre proporcionais à taxa de adesão de usuários a tais recursos. O aumento da polarização política em contextos como o brasileiro, a partir de 2018, é um caso documentado por Fisher.
Alicerces de uma nova ordem mundial de superacumulação e promotoras de uma modalidade perversa e inédita de exploração, calcada na captura dos dados pessoais de seus usuários e mantenedores (Silveira, 2017; Llaneza, 2019; Zuboff, 2020), as big techs apresentam-se ainda de forma audaciosa como solucionadoras das grandes problemáticas humanas, a despeito da política e da busca coletiva por respostas (Morozov, 2018). Desprezam, portanto, a participação popular ativa e a organização social, projetando suas ameaçadoras sombras sobre instituições tradicionais a partir de seus algoritmos e alto poder de processamento computacional (O’Neil, 2020). Simultaneamente, exercem intenso domínio econômico e grande fascínio popular, gerando grande apreensão em mercados e Estados-nação e atraindo multidões seduzidas por telas pulsantes e recompensas imaginárias.
Na metáfora que aproxima as big techs de monstros gigantescos, a ramificação de seus negócios em diferentes segmentos da vida social é análoga aos tentáculos que saem de seus corpos. A oferta de soluções tecnológicas, de acolhimento e de validação social funcionam como ventosas, tornando o abraço inescapável.
Inimigas do jornalismo
As plataformas digitais vêm ajudando a transformar a economia, a convivência social, a participação política, a circulação e o consumo de bens simbólicos, e a distribuição de conhecimento e informação. A variedade de campos impactados por esses players reforça a sensação de ubiquidade, alimentando a ideia de que não há saídas ou possibilidades efetivas fora das plataformas. O resultado é perverso porque engessa a imaginação, gerando desalento e paralisia criativa, já alertou Morozov (2018).
Assim como outras indústrias, a jornalística tem sido diretamente afetada pela expansão desenfreada das big techs. O jornalismo enfrenta uma crise complexa e multidimensional, que não pode ser compreendida apenas no terreno financeiro. O fechamento de empresas no setor, o encerramento de edições impressas, a extinção de postos de trabalho, a queda de tiragens, circulações e audiências são alguns dos aspectos mais visíveis da crise dessa indústria. Sucursais regionais são fechadas, escritórios internacionais encolhem e redações ficam cada vez mais enxutas. Conjugadas, essas peças formam um painel que mostra o apequenamento da paisagem jornalística e sua consequente perda de protagonismo social no que se refere ao serviço informativo. Mas as fissuras que ameaçam a sua existência também impactam outros planos (Christofoletti, 2019). A crise é financeira, mas também é ética, existencial, de governança, de credibilidade e confiança pública (Mick et al., 2021).
No enfrentamento da crise, o plano da sustentabilidade financeira é o mais imediato, pois o encontro de soluções pode levar à sobrevivência de um segmento que também é essencial para a construção da estabilidade social, convivência democrática, memória e imaginário coletivos, por exemplo. O jornalismo ajuda a tecer narrativas e experiências comuns que são importantes para que as pessoas não só reforcem seus laços sociais e comunguem de um sentimento de pertencimento de grupo, mas também se sintam estimuladas a buscar soluções coletivas para problemáticas mais complexas e amplas. O jornalismo incentiva o debate público e contribui para a fixação de agendas. Mas também questiona, propõe, critica e fiscaliza, oferecendo um conjunto de serviços à coletividade. É, portanto, um modelo perito e profissionalizado de fornecimento contínuo de informações à sociedade. Nesses contornos, o que o jornalismo se propõe a oferecer é único na vida social, e nenhuma outra instituição ou ator se dispõem a fazê-lo de forma perene. Por si só, essa condição singular deveria garantir ao jornalismo distinção e valor, mas a realidade é mais complexa. O jornalismo também é julgado por suas incompletudes, incongruências, falhas e incapacidades.
Para além disso, a indústria jornalística tem disputado o interesse geral com outras formas de captura da atenção como as redes sociais que distraem e consomem tempo e energia das pessoas (Fisher, 2022). O tempo é um ativo inelástico, o que significa que todos dispõem das mesmas 24 horas por dia, sendo necessário gerenciar atividades, compromissos e demandas dentro da mesma jornada. O processo de administração dessas agendas implica priorizar algumas tarefas, postergar outras e descartar ou ignorar terceiras. As redes sociais são mercadoras da atenção (Wu, 2016), sequestram a curiosidade individual e encorajam as pessoas, inclusive, a trabalhar para elas de graça. O resultado é o dispêndio cada vez maior de tempo nas plataformas do que em outras atividades da vida no trabalho, convívio e diversão.
As redes sociais da internet são empreendimentos muito engenhosos pois são projetadas como ambientes atraentes, acolhedores e agradáveis, onde se celebram encontros e afinidades, onde afetos são mobilizados, e onde se tem alguma sensação de proteção e segurança (Pariser, 2012). Essas redes se apoiam em interfaces convidativas, oferecem recursos de entretenimento e relaxamento, e facilitam a aproximação de usuários com interesses e desejos comuns. Esses fatores ajudam a explicar sua rápida disseminação global, mas não seriam tão eficazes sem as estruturas tecnológicas, algorítmicas, políticas e econômicas de que dispõem as plataformas digitais. Afinal, são elas também que dão às redes sociais suas condições de funcionamento e alcance.
As redes sociais não apenas oferecem uma experiência de conexão atraente, mas conseguem reter os usuários por mais tempo, o que os leva - consciente ou inconscientemente - a ter que regerenciar seu tempo disponível para o consumo de informação, entretenimento, cultura ou diversão. Como o tempo é invariavelmente limitado, escolhas precisarão ser feitas e, não raro, usuários serão levados a escolher entre se informar ou se relacionar socialmente no ambiente digital. Para sistemas que se dedicam a prover a sociedade de informações, como o jornalismo, essa situação de escolha pode representar um risco. Mas não é o único.
As plataformas digitais - por sua estrutura e alcance, natureza e funcionamento - projetam sombras mais espessas e encarnam ameaças reais à existência da indústria jornalística. Há, pelo menos, três razões para acreditar nisso: a) debilitam as finanças das empresas do setor; b) corroem o interesse e a atenção antes dirigidos aos produtos informativos; c) ajudam a disseminar conteúdos falsos e distorcidos, de modo a fortalecer os ecossistemas de desinformação que hoje fazem erodir sistemas de crença e confiança pública.
Esse impacto financeiro se dá em três frentes: redução de receitas, desestímulo da base pagante e não remuneração por uso de produtos.
Nas últimas duas décadas, Alphabet/Google e Meta/Facebook acabaram criando um novo centro de gravidade para as verbas publicitárias na internet. A rápida expansão de suas bases de usuários atraiu a atenção dos anunciantes que passaram a direcionar recursos para essas plataformas. Além disso, os dois conglomerados criaram serviços de exibição de anúncios, permitindo a monetização de conteúdos de produtores, a distribuição de comissões e a remuneração a partir de cliques e visibilidade na internet. Iniciativas como o Google Ads (lançado em 2000 com o nome Google AdWords), Google AdSense (de 2003) e Facebook Ads (2007) transformaram o mercado publicitário porque sinalizaram que a internet poderia ser lucrativa para diversos tipos e tamanhos de investidores e porque impulsionaram a criação de outros segmentos e negócios na web. O tempo mostrou que a criação desses serviços foi equivalente à instalação de praças de pedágio por toda a internet, o que deu à Alphabet e à Meta um controle incomparável sobre o fluxo de investimentos publicitários em escala global. Estima-se hoje que, juntas, as duas concentrem dois terços dos recursos dessa natureza online. Elas não só têm as plataformas de exibição de campanhas, como detêm mercados e sistemas de anúncios, e controlam os algoritmos de visualização de conteúdos. Com isso, podem ampliar ou restringir a circulação dessas mensagens, levando usuários a ter que pagar por anúncios ou outras formas de impulsionamento para obter posição mais privilegiada entre os resultados numa busca na internet, por exemplo, ou no fluxo de exibição das redes sociais.
A falta de transparência com que operam as big techs dificulta, inclusive, a mensurar seus impactos diretos e indiretos sobre a atividade jornalística. Antes da virada da década, estudos como o Cairncross (2019) já apontavam fissuras alarmantes no sistema. Espada (2021) lançou um facho de luz sobre o impacto da Covid-19 sobre a sustentabilidade da mídia na América Latina, fenômeno que foi determinante para uma vigorosa expansão das plataformas digitais, como já comentado anteriormente neste artigo. Camargo (2021) reúne dados que permitem tecer leituras sobre o peso das big techs sobre o jornalismo brasileiro, e em 2023, o Comitê Gestor da Internet publicou um estudo sobre remuneração do jornalismo pelas plataformas digitais que contribui para a compreensão de como o setor profissional se ressentiu dessa presença. Encomendado pela Câmara de Conteúdos e Bens Culturais do CGI, o estudo foi conduzido pela pesquisadora Marisa Von Bülow, que se debruçou sobre experiências internacionais como as do Canadá e Austrália. Ambos os países fizeram tratativas com as companhias tecnológicas para mitigar os danos que elas mesmas reconhecem ter causado à sustentabilidade da indústria de notícias.
Ao criar um novo centro de gravidade para a publicidade online, as plataformas drenaram oceanos de dinheiro que antes irrigavam os meios jornalísticos, habituados a equilibrar sua sobrevivência à base de receitas vindas de anúncios, combinadas a assinaturas e a compras de edições avulsas. É difícil identificar quanto das verbas destinadas a meios de comunicação foi redirecionado para outras plataformas de exibição, mas não se pode negar que a crise financeira no jornalismo se intensifique justamente com a expansão das big techs.
Um segundo movimento dessas plataformas ajuda a ameaçar a subsistência do jornalismo: a disseminação de uma mentalidade de que nem sempre é necessário pagar para acessar conteúdos e serviços. O oferecimento de facilidades e soluções não pagas ajudou a convencer parte do público de que a gratuidade era natural na internet. Se o usuário pode pesquisar em motores de busca, orientar-se por geolocalização, editar documentos, usar ferramentas de produtividade, assistir a vídeos, ter contas em redes sociais e utilizar suas funcionalidades sem ter que desembolsar nenhum centavo, por que deveria pagar para se informar? Com isso, há uma confusão comum no termo “free” que pode tanto significar “livre” como “grátis”. Entretanto, qualquer produção tem custos, pois depende de trabalho, energia, conhecimentos específicos, tempo, insumos etc. Serviços disponibilizados gratuitamente também resultam de investimentos, dedicação, aperfeiçoamento, e foram financiados a partir de ganhos com publicidade e variadas explorações dos dados pessoais dos usuários das plataformas digitais.
As últimas duas décadas permitiram que as big techs não só se expandissem para segmentos diversos, mas também que se espalhasse a ideia de que é possível acessar e se beneficiar com conteúdos sem custos. O desenvolvimento dos negócios na internet levou empresas jornalísticas a buscarem receitas alternativas para manter sua sustentabilidade, como os paywalls que - rígidos ou porosos - só permitem acesso a alguns produtos a partir de módicos pagamentos. A solução é controversa até mesmo entre as empresas, seja porque nem sempre apresenta a rentabilidade desejada ou ainda porque seja tecnicamente contornável por sistemas de burla.10
Para a indústria jornalística, o impacto causado pela difusão da ideia de gratuidade na internet é duradouro. Prejudica o setor porque cristaliza uma ilusão que contamina usuários atuais e gerações futuras, pois incute o pensamento da desnecessidade de também arcar com os custos de um serviço necessário: informação. Não é à toa que usuários mais jovens, na média, resistam mais a pagar por notícias do que contingentes mais velhos. A disseminação da falsa ideia de gratuidade, hipertrofiada pelas big techs, tem efeitos em dois tempos: no presente, não contribui para o aumento da base de usuários pagantes, e, no futuro, compromete a disposição de novos públicos para assumir parte da conta.
Uma terceira razão para considerar as big techs inimigas do jornalismo é que as grandes plataformas não remuneram as empresas do setor nem os jornalistas pelo uso e republicação de conteúdos. Foi assim por anos. Mais recentemente, a partir da pressão de conglomerados midiáticos em países hegemônicos e do surgimento de leis protecionistas, foram firmados acordos entre as big techs e os publishers. Entretanto, esses acordos são pontuais, ainda muito restritos aos maiores grupos jornalísticos, deixando de fora veículos menores, independentes, comunitários e os próprios jornalistas. A partir de 2020, entidades de classe como as federações brasileira e internacional dos jornalistas (Fenaj e FIJ) passaram a defender a taxação das big techs e a consequente criação de fundos de manutenção do jornalismo, para distribuição de repasses a profissionais e meios (Camargo, 2021). Entidades empresariais como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) defendem outras formas de cobrança das plataformas, derivadas de direitos autorais. O aparente consenso de que as empresas de tecnologia devem pagar pela circulação de conteúdos jornalísticos em suas plataformas não garante a solução do problema, e a demora nesta definição prejudica mais o setor.
Em síntese, as big techs prejudicam muito a saúde financeira do jornalismo porque dificultam a destinação de verbas publicitárias, desestimulam que consumidores paguem por notícias, e exploram o trabalho de empresas e jornalistas, não fazendo repasses de eventuais dividendos. Dissimuladas, mas agressivas e contundentes, essas atitudes permitem considerar as grandes plataformas digitais inimigas do jornalismo, já que ameaçam concretamente sua existência. Como lembra Jason Whitaker (2019, p.5), ao analisar como a Inteligência Artificial e as big techs afetam a paisagem jornalística, “a tecnologia altera nossos padrões de comportamento, e de forma particular como consumimos jornalismo”.
“Apoio” ao jornalismo
Um dos pontos de sustentação do modelo de negócios das redes sociais é a viralização de conteúdos. Ele consiste na distribuição massiva, ultrarrápida, espontânea e descentralizada de mensagens que se assemelha a uma disseminação altamente contagiosa de uma doença. Daí a metáfora do espalhamento de um vírus com grandes taxas de transmissibilidade. Para as redes sociais, um conteúdo viral é aquele com capacidade exponencial de chegar a mais pessoas, podendo determinar as bases de um debate, criar contextos, consolidar narrativas ou versões, influenciar comportamentos e gerar agências. Para as grandes plataformas, parece pouco importar se o conteúdo viral é verdadeiro, confiável, atual, contextualizado, equilibrado, ético ou irresponsável. Seu potencial de disseminação é o mais determinante, pois a efetividade de seu espalhamento depende muito mais dele do que seu teor ou origem. Essa prevalência tem permitido afirmar que as redes sociais são privilegiadas disseminadoras de conteúdos falsos, distorcidos e descontextualizados. Nesse sentido, as plataformas contribuem direta ou indiretamente para uma atmosfera desinformante, promotora da desconfiança generalizada, da descrença e da pós-verdade, justamente o ambiente que o jornalismo se dispõe a enfrentar.
Desde 2010, pelo menos, pressões políticas e de grupos preocupados com a sufocante atmosfera de pós-verdade têm cobrado das big techs mais comprometimento no combate à desinformação. Pesquisa realizada pelo Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social analisou como Facebook, Instagram, WhatsApp, Youtube e Twitter lidaram com o problema da desinformação entre 2018 e 2020. O estudo observou como essas redes abordaram a questão, como estruturaram suas políticas e ações para moderação de conteúdo, que transparência adotaram, e que outras medidas foram implementadas. As conclusões são de que “as ações ainda carecem de organização, robustez, transparência e avaliação” (Intervozes, 2021, p.295). Segundo o estudo, as plataformas precisam reconhecer e enfrentar o problema da desinformação, revisando, inclusive, seus modelos de negócios “sob pena de seguirem oferecendo remédios incapazes de interromper uma forma de comunicação que hoje se converteu em um dos principais desafios às democracias em todo o mundo” (ibidem). Em outubro de 2020, o subcomitê antitruste da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos concluiu um relatório de 449 páginas recomendando que as big techs tenham seus negócios reformulados, pois sua presença ameaça o capitalismo e a democracia. Segundo o documento, “esses gigantes têm a capacidade de escolher vencedores e perdedores em todos os escalões de nossa economia. Eles não só exercem imenso poder mas abusam dele, ao cobrar taxas exorbitantes, impor termos contratuais opressivos, e extrair dados valiosos das pessoas e empresas que dependem deles”.11 Na Europa, órgãos reguladores têm imposto multas em casos de violação de leis de proteção de dados pessoais, concentração excessiva de mercado, práticas lesivas à competitividade e à inovação, e inoperância diante de espalhamento de desinformação. É crescente, portanto, o coro para que as grandes plataformas digitais sejam reguladas, com a demarcação de limites e responsabilidades desses provedores de serviço e infraestrutura (Flew, 2021).
Alguns países como a Austrália começam a desenhar modelos regulatórios que podem servir de referência (Meese; Hurcombe, 2020), sendo necessário avaliar tanto características locais quanto políticas corporativas globais, ditadas pelas big techs. Dada a complexidade do tema, existe ceticismo sobre uma resposta única. Por isso, iniciativas regionalizadas começam a se apresentar, como a da União Europeia para uma abordagem multidimensional sobre o fenômeno da desinformação12 e a do Observatorio Latinoamericano de Regulación, Medios y Convergencia (Observacom), oferecendo contribuições para “uma regulação democrática das grandes plataformas que garanta a liberdade de expressão na internet”.13
Enquanto parâmetros regulatórios não são definidos, alguns conglomerados implementam programas para combater a desinformação e fortalecer o jornalismo profissional. Os acenos mais notórios vêm de Alphabet/Google e Meta/Facebook que alardeiam estar empenhados em financiar iniciativas de checagem de dados, oferecer capacitação profissional, e auxiliar as redações com o desenvolvimento de produtos tecnológicos.
Google News Iniciative (GNI)14 se apresenta como parceira de editores e jornalistas “para construir um ecossistema de notícias mais sustentável, diversificado e inovador”. Atua em três planos: subsidia redações com ferramentas digitais, treinamentos e recursos; reorienta as organizações de notícias para buscarem sustentabilidade em seus negócios; fecha parcerias com líderes do ramo para buscar soluções para o setor. Segundo informa, entre 2019 e 2021, a GNI apoiou mais de 7 mil parceiros em 120 países, treinando 450 mil jornalistas e investindo mais de US$ 300 milhões em empreendimentos distintos. Os números impressionam, mas constam de comunicados que mais se assemelham a peças de marketing, e não são auditados.
No Brasil, o alcance e a diversidade de ações também chamam a atenção pois se traduzem em desafios de inovação, laboratórios de sustentabilidade para redações nativas digitais, programa de aceleração de startups jornalísticas e fundo de auxílio emergencial do setor, para citar os mais visíveis. A estratégia é ostensiva e faz com que o GNI se aproxime de organizações grandes - como O Estado de S. Paulo e O Globo -, veículos de nicho - como o Jota e Ponte - e meios independentes - como Cajueira, Revista Azmina e Alma Preta, por exemplo. E que também apoie empreendimentos como o Núcleo Jornalismo, Agência Bori, Amazonia Real, Canal Reload e eventos da Associação Brasileiro de Jornalismo Investigativo (Abraji). A lista é tão longa que o GNI se apresenta como um dos principais patrocinadores do jornalismo no país, na condição de não anunciante. Num contexto de grave crise financeira, sua presença seria muito bem-vinda, caso não implicasse riscos para o próprio jornalismo. Nenhum ator reúne tantas informações estratégicas de organizações do setor quanto o GNI. Ao mesmo tempo, abastece as redações com recursos, sistemas e ferramentas digitais que aumentam também a dependência tecnológica delas. As soluções apresentadas passam todas pelos canais da big tech: YouTube, GooglePlay e Google News.
Por sua vez, a versão brasileira do Meta Journalism Project (MJP)15 financia iniciativas do Repórter Brasil, do Atlas - que mapeia desertos de notícias -, ações das agências de fact-checking Lupa e Aos Fatos, e parte do Comprova, consórcio de veículos para verificação de informações. A exemplo da Google, oferece cursos e firma alianças com entidades e líderes do ramo, alinhando interesses e ajudando a definir políticas setoriais, com a adoção de recursos como o guia do Facebook e Instagram para jornalistas ou a distribuição de bolsas para jornalismo local. Criado em 2017, o MJP anunciou em janeiro de 2019 a dotação de US$ 300 milhões para investimentos, verba vultosa que se pulveriza quando distribuída entre os países alcançados e as iniciativas em desenvolvimento. Em março de 2022, o programa Acelerando a Transformação Digital selecionou 80 jornalistas e estudantes brasileiros para receber mentorias e fundos para desenvolver seus projetos. A verba individual anunciada era de até US$ 2,5 mil cada, dinheiro insuficiente para realizar qualquer ação em jornalismo.
Alardear apoio ao jornalismo é uma estratégia muito oportuna para as big techs, ainda mais quando se fortalece o debate público sobre a regulação das plataformas. Investimentos no setor reforçam os balanços sociais dos conglomerados à medida que fortalecer o jornalismo pode também significar apoiar a democracia, reforçar comunidades locais e defender a liberdade de expressão. Os esforços para o desenvolvimento de produtos de GNI e MJP ocorrem dentro dos próprios ecossistemas de Alphabet e Meta, o que leva jornalistas a intensificar o uso e adotar as soluções Google e Facebook para suas redações. Para completar, é preciso entender que injetar recursos nas organizações do setor acaba atraindo a simpatia de editores e eventualmente inibindo coberturas mais críticas e severas sobre os negócios e estratégias das big techs. É ainda cedo para determinar quanto custará ao jornalismo o apoio dos gigantes da tecnologia. Pode-se intuir que a perda de independência editorial é um risco de alta probabilidade tendo em vista a assimetria de poderes entre os conglomerados e organizações jornalísticas financeiramente debilitadas e em busca de fôlego para sobreviver. Mas já há estudos que apontam como esses fundos intermediários liderados pelas big techs são decisivos na vida (e na sobrevida) de meios, e funcionam para capturar a mídia (Papaevangelou, 2023).
Considerações finais
Em outubro de 2020, o CEO da Alphabet/Google, Sundar Pichai, anunciou que destinaria US$ 1 bilhão para veículos jornalísticos a partir do Google ShowCase (no Brasil, Google Destaques). A iniciativa era uma aposta para privilegiar a distribuição de conteúdo noticioso nas plataformas digitais e abrir caminho para o fechamento de acordos com editores e veículos de mídia.
O planejamento é que o montante seja distribuído ao longo de três anos, e mesmo que se efetive, não se pode acreditar que a indústria jornalística veja sua crise financeira se dissipar por completo. Afinal, o recrudescimento dos negócios não só encolheu o setor, mas também deteriorou parte de seu poder de resposta. A confiança pública na imprensa dá sinais de cansaço, a desinformação tornou-se endêmica e as organizações jornalísticas tornaram-se comprometidamente dependentes das big techs para alcançar seus públicos. Aportes financeiros ajudam a saldar dívidas e manter compromissos com fornecedores e empregados, mas não são capazes - sozinhos - de restaurar parte do espaço social que o jornalismo ocupava antes.
Ao observar a relação entre empresas noticiosas e Facebook, Jurno (2020) documentou parcerias, disputas e controvérsias ocorridas entre 2014 e 2019 que ajudaram a traçar os contornos do processo de plataformização do jornalismo. Para além da dependência tecnológica que alimentam, os gigantes da tecnologia reconfiguram estruturas e culturas internas a partir de uma lógica de plataforma, moldando novos hábitos e valores.
Para Magallón (2021), a pandemia cristalizou três ideias sobre as big techs: elas são cada vez mais importantes politicamente, representam soluções para um número crescente de pessoas, mas são incapazes para resolver seus próprios problemas, como desinformação, polarização e discurso do ódio. Esse panorama ajuda a visualizar o relacionamento entre meios jornalísticos e redes sociais para além do conflito, considerando também oportunidades de cooperação, dependência e busca de independência.
Bell (2021) não se mostra tão confiante de que as empresas de tecnologia realmente se preocupem com o jornalismo. Para a autora, o relacionamento com as big techs reserva riscos para o jornalismo, e será necessário que os jornalistas fiquem atentos aos apoios recebidos para que não fiquem impedidos de perseguir pautas e temas de interesse coletivo. Taxação das grandes plataformas e programas de expansão de mídia pública (ou cívica) são apostas para que papéis fiquem bem demarcados de lado a lado.
A relação tensa entre big techs e jornalismo passa inevitavelmente por regulação das plataformas e serviços digitais. A implementação em 2024 do Digital Markets Act (DMA) e do Digital Services Act (DSA) pela Comunidade Europeia é um movimento claro para a imposição de limites ao setor tecnológico. Se em 2018 o Regulamento Geral de Proteção de Dados foi determinante para inspirar a criação de legislações em diversos países, inclusive o Brasil, o pacote DMA-DSA deve ter efeito de aceleração idêntico.
Nos últimos anos, o parlamento brasileiro já tem sinalizado alguma disposição para regular as plataformas digitais. O esforço mais avançado foi o projeto de uma lei nacional de liberdade, responsabilidade e transparência na internet,16 prevendo responsabilidades para as companhias que operam no setor. Originada e aprovada no Senado, a proposta tramitou na Câmara Federal e foi objeto de uma disputa ruidosa entre as big techs, organizações da sociedade, setores do governo e empresas locais de tecnologia. Grupos de pressão diversos e estratégias arrojadas de lobby já batizaram o projeto de “PL das Fake News” e “PL da Censura”, só pra citar os rótulos mais notórios. Geralmente alheias à cacofonia do debate público brasileiro, Google, Spotify e outras plataformas deixaram seus cômodos lugares para espalhar anúncios contrários ao projeto de lei em flagrante campanha de desinformação. Governo federal e coletivos como a Coalizão Direitos na Rede - que reúne mais de 50 organizações de ativistas e pesquisadores - reagiram, denunciando as manobras.17 A tensão foi tão grande que o então presidente da Câmara, Arthur Lira, suspendeu a tramitação do PL n.2.630, justificando que o debate estava politizado demais. Para não abandonar o tema por completo, criou um grupo de trabalho para trabalhar num substitutivo, o que só agradou quem não tem pressa alguma para regular o setor. Em 2024, o PL n.2.630 não foi o único cavalo de batalha nas intenções do Poder Legislativo regular as big techs. O PL n.2.370,18 que tenta modernizar a lei de direitos autorais, também movimentou as placas tectônicas dos interesses transnacionais, dos interesses de categoriais profissionais - como artistas e jornalistas - e de interesses que regem uma soberania digital nacional. O projeto pouco avançou, prejudicado também pelas distrações inevitáveis de um ano de eleições municipais. Tais disputas, mostra a história do Parlamento brasileiro, são complexas, arrastadas e dependem de vários fatores para serem vencidas. Mas haverá vencedores, inevitavelmente, e sobram dúvidas sobre que interesses prevalecerão.
Nilsen e Ganter (2022) insistem nas muitas nuances e complexidades que marcam as relações entre as plataformas e os publishers, oscilando vertiginosamente entre o fortalecimento mútuo e a dependência das empresas de notícias. Há perigos, advertem, mas existem oportunidades que não podem ser ignoradas. Não é possível imaginar um futuro para o jornalismo sem as grandes plataformas. Ainda mais agora quando os vetores da tecnologia apontam para contextos onde a Inteligência Artificial pode contribuir para a geração de textos e dados, pode auxiliar a tomar decisões editoriais e pode, igualmente, produzir e espalhar desinformação em escalas inimagináveis.
O desafio para editores e jornalistas não é só evitar a extinção da sua atividade, mas também escolher e inventar sua sobrevida. A curta história de sucesso das big techs demonstra que elas não costumam dar espaço ou chance para rivais. Mais longa, a história do jornalismo sempre foi recheada de desafios. É inadiável encontrar formas de vencê-los ou contorná-los dentro e fora da lógica das plataformas.
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Notas
-
1
Segundo a Kepios, em janeiro de 2020, o Facebook tinha 2,49 bilhões de usuários. Estatísticas disponíveis em <https://datareportal.com/essential-facebook-stats>. Acesso em: 23 set. 2023.
-
2
Relatório disponível em <https://datareportal.com/social-media-users#:~:text=Detai-led%20analysis%20by%20the%20team,of%20the%20total%20global%20population>. Acesso em: 25 nov. 2024.
-
3
Dados de julho de 2024 do Statista, disponíveis em: <https://www.statista.com/statistics/1219589/youtube-penetration-worldwide-by-country/>. Acesso em: 25 nov. 2024.
-
4
Dados disponíveis em: <https://websitebuilder.org/blog/instagram-statistics/>. Acesso em: 19 abr. 2022.
-
5
Ver: <https://edition.cnn.com/2021/06/28/tech/facebook-trillion-ftc/index.html>. Acesso em: 8 maio 2022.
-
6
Dados disponíveis em: <https://www.similarweb.com/pt/engines/>. Acesso em: 20 set. 2023.
-
7
Ver: <https://www.mundoconectado.com.br/google/alphabet-dona-do-google-registra-aumento-de-7-no-faturamento-no-segundo-trimestre-de-2023/>. Acesso em: 21 set. 2023.
-
8
A Meta é também proprietária do Facebook Messenger, serviço apontado como a quarta rede social do mundo.
-
9
Há também quem as chame de Big Five, as cinco mais proeminentes companhias tecnológicas do mundo.
-
10
Paywalls dependem da ativação de códigos JavaScript. Para contornar os muros de pagamento, extensões podem ser adicionadas a navegadores da internet para neutralizar esses códigos antes de serem executados.
-
11
Ver em: <https://www1.folha.uol.com.br/tec/2020/10/big-techs-abusam-de-poderes-e-precisam-rever-praticas-afirma-relatorio-dos-eua.shtml>. Acesso em: 15 maio 2022.
-
12
Ver em: <https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/6ef4df8b-4cea-11e8-be1d-01aa75ed71a1/language-en>. Acesso em: 13 maio 2022.
-
13
Ver em: <https://www.observacom.org/wp-content/uploads/2019/08/Contribuições-para-uma-regulação-democrática-das-grandes-plataformas-que-garanta-a-liberdade-de-expressão-na-internet.pdf>. Acesso em: 13 maio 2022.
-
14
Disponível em: <https://newsinitiative.withgoogle.com/pt-br/>. Acesso em: 13 maio 2022.
-
15
Disponível em: <https://www.facebook.com/journalismproject/home>. Acesso em: 15 maio 2022.
-
16
Ver: <https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2256735>. Acesso em: 23 set. 2023.
-
17
Ver: <https://direitosnarede.org.br/2022/04/27/por-que-as-bigtechs-sao-contra-o-pl-2630-e-uma-legislacao-que-regule-suas-atividades-no-brasil/>. Acesso em: 24 set. 2023.
-
18
Ver: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2198534>. Acesso em: 24 set. 2023.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
29 Nov 2022 -
Aceito
16 Jan 2024