RESUMO
No presente artigo, os autores analisam episódios recentes de cerceamento das liberdades de imprensa e de expressão promovidos e incentivados pelo Governo Federal, sobretudo na gestão Bolsonaro (2019-2022), bem como expõem os anacronismos de um ordenamento jurídico que, em muitos casos, protege e avaliza diferentes formas de intimidação e perseguição a jornais e jornalistas. Tais episódios explicitam o uso político da desinformação, ora convertida numa política de Estado não oficial, e colaboram para o esgarçamento da democracia, conforme apontado por diferentes monitores internacionais de qualidade democrática. Segundo um deles, o V-Dem, o Brasil é um dos dez países em que a democracia mais se deteriorou no último decênio, em grande medida em razão da queda nas notas do país nos quesitos liberdade de imprensa e liberdade acadêmica.
PALAVRAS-CHAVE:
Liberdade de imprensa; Liberdade de expressão; Desinformação; Democracia
ABSTRACT
This paper analyzes recent episodes of restriction of press freedom and freedom of speech promoted and stimulated by the Brazilian federal government, specially under Jair Bolsonaro (2019-2022). It also exposes the anachronisms of a legal system that, in some cases, protects and endorses different forms of intimidation and persecution of journalists and media outlets. These episodes exemplify the political use of misinformation, converted in a non-official state policy, and collaborate to the erosion of democracy, which can be measured by using different international monitors of democratic quality. According to V-Dem, one of the most prestigious of these monitors, Brazil is among the ten countries that had the biggest democratic erosion in the last ten years, in part because of the decrease of standards in both press and academic freedom.
KEYWORDS:
Press freedom; Freedom of speech; Disinformation; Democracy
Introdução
Os quatro anos de governo Bolsonaro deixaram um rastro sem precedentes de agressões e ataques à imprensa. Ataques desferidos pelo próprio presidente da República, frise-se, ou estimulados por ele ao longo de uma gestão marcada por declarações autoritárias, violações à liberdade de expressão e ofensas dirigidas a empresas e profissionais de comunicação.
Tal comportamento foi observado por entidades de classe, associações e organizações não governamentais, inclusive estrangeiras, especializadas no monitoramento da mídia e na garantia do direito à informação. Em janeiro de 2022, o relatório Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil, elaborado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) com base em denúncias feitas diretamente a ela e a outros sindicatos da categoria e em notícias publicadas em veículos de comunicação, revelou que Jair Bolsonaro foi o autor, sozinho, de 27% das violações à liberdade de imprensa registradas em 2022. Dos 376 ataques denunciados, Bolsonaro perpetrou 104 (Fenaj, 2023, p.4). A lista combina agressões verbais e falas que buscam descredibilizar veículos de comunicação e, no limite, o jornalismo.
Em 2023, o então presidente do Brasil despontou, pelo quarto ano consecutivo, como o maior adversário da liberdade de imprensa no levantamento anual da Fenaj, ou seja, desde que tomou posse. Além de confundir a população, o principal efeito colateral dessa postura é incentivar novos ataques e agressões contra jornais e jornalistas. Se o presidente da República age dessa forma, por que não podemos agir igual? Quando um eventual impasse entre profissionais da imprensa e cidadãos por eles criticados ou denunciados descamba para a agressão, o mau exemplo presidencial surge como salvo-conduto, autorizando o inaceitável.
Segundo a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), que monitora desde 2012 as denúncias de violência contra comunicadores, o número de vítimas de violência não letal escalou de 78 em 2019 para 189 em 2020, um aumento de 142% (Abert, 2021, p.14), e chegou a 230 em 2021, 21% a mais (Abert, 2022, p.12). O número de atentados contra jornalistas, por sua vez, saltou de zero em 2019 para quatro em 2020 e chegou a oito no ano seguinte (ibidem, p.16). Em 2022, pela primeira vez as agressões (físicas) superaram as ofensas (verbais) (Abert, 2023, p.14). A metodologia da pesquisa não é explicitada na publicação.
Outro levantamento, dessa vez da Agência Lupa, uma agência especializada em checagem de notícia e combate à desinformação, mostrou que o presidente proferiu ofensas a jornalistas em 42 das 49 lives que realizou em 2021 (Afonso, 2021).
Jornalismo ameaçado
A investida de Bolsonaro contra o jornalismo profissional teve início ainda durante a campanha eleitoral de 2018, a mesma que o consagrou presidente, com 57,8 milhões de votos (55% dos votos válidos no segundo turno). Na ocasião, o então candidato, inspirado em Donald Trump, presidente dos Estados Unidos em seu primeiro mandato, escolheu polarizar com a imprensa como forma de promover a imagem de antipolítico, avesso a conchavos e disposto a dialogar diretamente com o povo.
Amparado numa robusta rede de apoiadores organizada nas redes sociais e em grupos de WhatsApp - turbinada pelo uso de bots, os robôs da internet, e alimentada por uma teia igualmente robusta de produtores e disseminadores de desinformação (Campos Mello, 2020) -, Bolsonaro mirou no jornalismo e acertou na democracia. “A Folha de S.Paulo é a maior fake news do Brasil; vocês não terão mais verba publicitária do Governo”, discursou em vídeo transmitido ao vivo para uma multidão reunida na Avenida Paulista no domingo, 21 de outubro, uma semana antes do segundo turno.
Dias antes, o jornal havia revelado a existência de um forte esquema de propagação de conteúdo digital a favor de Bolsonaro financiado por empresas, em descumprimento à legislação eleitoral. Naquele e nos meses seguintes, a reportagem de Patrícia Campos Mello suscitaria uma série de ofensas por parte do candidato e de aliados, que protocolaram três ações contra a Folha.
O repúdio àquele pronunciamento, que tampouco havia sido a estreia de Bolsonaro em sua cruzada contra a imprensa, foi imediato, embora reduzido a entidades profissionais e de defesa do jornalismo. “Para demonstrar algum compromisso com a preservação da democracia, o candidato deveria condenar a intimidação de jornalistas, em vez de fomentar essa prática”, declarou Daniel Bramatti, então presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), à Folha de S.Paulo (22 out. 2018). “É lamentável esse tipo de comentário, sobretudo vindo de um candidato à Presidência da República, pois demonstra incompreensão sobre o papel do jornalismo. Também é condenável a ameaça de retaliação com investimentos publicitários do Governo”, afirmou Marcelo Rech, então presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), à mesma Folha, lembrando que a distribuição desses recursos segue critérios técnicos.
Na primeira coletiva de imprensa de Bolsonaro após a confirmação da vitória, realizada em sua residência no Condomínio Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro, no dia 1º de novembro, repórteres dos veículos Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e CBN foram impedidos de entrar. No dia da posse, as restrições impostas aos jornalistas que tentaram se credenciar para cobrir as cerimônias foi tema de reportagens e notas de repúdio. De acordo com o noticiário, repórteres foram confinados por até sete horas no mesmo ambiente, obrigados a se sentar no chão, com acesso restrito a banheiro, sem alimentação (a não ser que levassem o próprio lanche, acondicionado em saco plástico transparente) e impedidos de circular entre os diferentes prédios (os eventos de posse acontecem em mais de um local ao longo do dia). “Um dia de cão”, escreveu a colunista Mônica Bérgamo, na Folha. “Cubro posse desde o general João Figueiredo; nunca houve nada tão restritivo”, comparou Miriam Leitão, no Globo.
Desde aquele 1º de janeiro de 2019, intimidar jornais e jornalistas virou prática rotineira, uma espécie de modus operandi do Governo Federal. Logo no primeiro trimestre, pipocaram relatos de censura e retaliações na EBC. Jornais e sites, como a revista Fórum e o fotógrafo Lula Marques, foram acionados na Justiça ainda em janeiro. Houve cortes e remanejamentos na publicidade oficial. Assinaturas de jornais, mantidas havia anos por ministérios e órgãos vinculados à administração federal, foram canceladas.
Já em abril de 2019, o Brasil caiu três posições no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, elaborado pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), com sede em Paris e escritório no Rio de Janeiro. “A eleição de Jair Bolsonaro em outubro de 2018, após uma campanha marcada por discursos de ódio, desinformação, violência contra jornalistas e desprezo aos direitos humanos, profetizou um período sombrio para a democracia e a liberdade de imprensa”, diz o relatório. “Nesse contexto tenso, os jornalistas brasileiros tornaram-se o principal alvo, e são regularmente atacados por grupos de ódio e simpatizantes de Bolsonaro, principalmente nas redes sociais” (RSF, 2019).
Era o início de um deslizamento que se estenderia pelos anos seguintes. De 102º lugar em 2018, o Brasil passou para 105º em 2019, 107º em 2020 e 111º em 2021, resultando no ingresso do país na chamada zona vermelha. A organização monitora 180 países e os classifica em cinco cores, conforme a qualidade da liberdade de imprensa: branca (muito boa), amarela (boa), laranja (problemática), vermelha (difícil) e preta (muito grave). Em 2015, o Brasil havia atingido sua melhor colocação, ocupando o 99º lugar. A posição número 111, de 2021, era a pior desde o ingresso do Brasil no ranking, em 2013. “As relações entre o governo e a imprensa se deterioraram significativamente desde a chegada ao poder do presidente Jair Bolsonaro”, afirmava a página dedicada ao Brasil no site da RSF, em agosto de 2022. “O presidente ataca regularmente a imprensa, mobilizando exércitos de apoiadores nas redes sociais. Trata-se de uma estratégia bem coordenada de ataques com o objetivo de desacreditar a mídia, apresentada como inimiga do Estado.”
Os ataques referidos pela ONG podem ser conferidos numa breve retrospectiva dos anos 2020 e 2021. “Ela queria dar o furo”, divertiu-se o presidente em 18 de fevereiro de 2020, em Brasília, referindo-se à jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, e conferindo conotação sexual ao jargão jornalístico que é sinônimo de notícia inédita. “A Globo nem lixo é, porque não pode ser reciclada”, disse, em 30 de abril, também em Brasília. “Minha vontade é encher tua boca na porrada”, ameaçou o presidente, em 23 de agosto, em resposta a um repórter do jornal O Globo. “Vocês são uma porcaria de imprensa. Cala a boca. Vocês são canalhas”, disparou contra uma jornalista da TV Vanguarda, afiliada da Rede Globo, em 21 de junho de 2021, em Guaratinguetá. “Volta pra faculdade; para de fazer pergunta idiota”, esbravejou em 25 de junho, em Sorocaba, agredindo uma repórter da CBN.
Tradição censória e patrimonialismo
Poder-se-á argumentar, com razão, que Jair Bolsonaro não foi o primeiro presidente do Brasil a perseguir jornalistas. Essa prática remonta às origens da imprensa no país. Os primeiros jornais lançados aqui, entre 1706 e 1807, foram todos proibidos pela Coroa portuguesa. A primeira publicação autorizada a circular, em 1808, foi a Gazeta do Rio de Janeiro, publicada na Impressão Régia, editora instalada pela Família Real após a mudança da Corte de Lisboa para o Rio (Lopes, 2008).
Outro episódio emblemático foi o assassinato do jornalista Libero Badaró por correligionários do imperador Dom Pedro I, no final de 1830. Badaró defendia o fim da monarquia. Sua execução agravou uma crise política que culminaria na abdicação do imperador em favor do filho, Dom Pedro II, então com apenas 5 anos, em 7 de abril de 1831. Cem anos depois, a data foi escolhida pela Associação Brasileira de Imprensa como Dia do Jornalista, em memória de Badaró (Vannuchi, 2022).
No livro O adiantado da hora, Carlos Eduardo Lins da Silva (1991) diz que a fúria censória não é exclusiva de um grupo, nem dos militares e nem da direita. Ao fazer considerações sobre o tema, o autor lembra um episódio em que Ulysses Guimarães, ícone da oposição à ditadura militar e símbolo da campanha por Diretas Já, alçado à presidência da Câmara dos Deputados e exercendo interinamente a presidência da República, em 1988, mandou apreender cartazes da Central Única dos Trabalhadores (CUT) que expunham uma opinião que considerou ofensiva a alguns congressistas.
Esse espírito autoritário pode ser observado também nas ações daqueles que despacharam no Palácio do Planalto desde a redemocratização. Luiz Inácio Lula da Silva quis expulsar do país um correspondente do jornal New York Times que o havia ofendido numa reportagem, chamando-o de cachaceiro. Anos antes, Fernando Henrique Cardoso reclamava que os jornais, em especial a Folha de S.Paulo, promoviam uma campanha de desmoralização contra ele. Em 1996, irritado com dois artigos de opinião assinados por Clóvis Rossi e Josias de Souza, telefonou ao editor do jornal, Octavio Frias de Oliveira, ameaçando não ir à inauguração do novo parque gráfico da Folha. Os dois colunistas tiveram de “se retratar” em seus espaços na edição de domingo.
Em março de 1990, Fernando Collor ainda não havia completado um mês na Presidência quando a redação da Folha foi invadida pela Polícia Federal, supostamente a mando do Governo, conforme repercussão na época. Em 1992, o mesmo Collor atacava jornais e revistas enquanto buscava se livrar do impeachment. A família do também ex-presidente José Sarney chegou a obter na Justiça, já em 1999, aval para censurar o jornal O Estado de S. Paulo, proibindo-o por nove anos de publicar reportagens sobre a operação Boi Barrica da Polícia Federal, na qual os Sarney eram investigados.
Atitudes autoritárias por parte do Governo Federal buscam moldar a imprensa conforme os desejos ou interesses do mandatário da ocasião, como se a imprensa pertencesse a eles ou lhes devesse obediência. Nesse sentido, podem ser chamadas de patrimonialistas. Para Lilia Schwarcz (2019, p.65), o patrimonialismo “é resultado da relação viciada que se estabelece entre a sociedade e o Estado, quando o bem público é apropriado indevidamente. Ou, dito de outra maneira, trata-se do entendimento, equivocado, de que o Estado é bem pessoal, ‘patrimônio’ de quem detém o poder”. É o que leva um governante a, por exemplo, ameaçar com cortes de verbas publicitárias os veículos que não se “emendarem”.
Com Jair Bolsonaro, a sanha patrimonialista foi alçada à enésima potência. O presidente não apenas busca cercear o trabalho da imprensa e impedir a circulação de conteúdo que questione suas ações, como o faz de forma violenta, insultuosa e intimidatória. O patrimonialismo, neste caso, converte-se em autoritarismo, irmão siamês da tirania. “Quando a caça às bruxas faz sua aparição em uma sociedade democrática, a liberdade fica em perigo e a democracia corre o risco de se converter em seu oposto”, diz Norberto Bobbio (2015). Segundo o filósofo italiano, governo democrático é aquele em que os governantes exercem o poder sob o controle dos cidadãos. “Mas como poderiam os cidadãos controlá-lo se não o veem?”, indaga.
Entulho autoritário e ordenamento jurídico
Exemplos de comportamentos autoritários não faltam. A utilização, ao longo de quase quatro décadas, da última Lei de Segurança Nacional (LSN) é paradigmática. Essa Lei, de número 7.170/83, integrava até 2021 o conjunto de leis, decretos e doutrinas jurídicas que, herdado do período militar, deveria ter sido removido do ordenamento jurídico após a redemocratização, mas que subsistiu. Esse conjunto de diplomas legais com conteúdo cada vez mais anacrônico é habitualmente referido como “entulho autoritário”, denominação atribuída ainda nos anos 1970 por setores da oposição, como o MDB e a Ordem dos Advogados do Brasil, à época presidida por Raymundo Faoro, e a LSN talvez seja seu maior expoente, por prever, entre outros disparates, diversos delitos em razão da expressão da palavra.
Um de seus dispositivos, o artigo 26, estipulava que ofender a honra do Presidente da República ou de outras autoridades constituía crime a ser punido com pena de 1 a 4 anos de reclusão. Essa proteção da honra presidencial é resquício de uma época em que o governante era intangível, como nas monarquias absolutistas. Mas, no Brasil, essa aberração permaneceu na LSN até ser revogada pela Lei n.14.197 de 2021.
Embora diversos governos tenham recorrido à LSN já no período democrático, como ao investigar manifestantes que participaram dos protestos de junho de 2013 e ao condenar Adélio Bispo por esfaquear o então candidato Jair Bolsonaro num evento em Juiz de Fora (MG), em 2018, a partir de 2020 verificou-se um aumento significativo de iniciativas baseadas na doutrina da Segurança Nacional, não apenas pelo governo de Bolsonaro, mas também por integrantes do Supremo Tribunal Federal - que recorreram a ela em 2022, ao condenar o então deputado federal Daniel Silveira por ameaçar o Poder Judiciário e relatar o processo conhecido como inquérito das Fake News.
Os casos de tentativa de aplicação da LSN pelo Governo Federal e seus aliados chocaram pelo inusitado. Listamos alguns desses episódios: (i) o caso da charge do Aroeira, em que o cartunista e o jornalista Ricardo Noblat divulgaram uma charge na qual o presidente Bolsonaro foi retratado transformando uma cruz vermelha (em referência à Covid-19) em uma suástica nazista; (ii) o caso do outdoor do pequi roído, em que duas pessoas de Tocantins instalaram duas placas de outdoor comparando Jair Bolsonaro a um pequi roído, uma coisa sem valor; (iii) o caso de Marcelo Feller, advogado que criticou a atuação de Bolsonaro durante a pandemia num programa da rede CNN, chamando-o de genocida; (iv) o caso de Felipe Neto, youtuber que também chamou o presidente de genocida; e (v) o caso do jornalista Hélio Schwartzman, que escreveu um artigo na Folha de S.Paulo com o título “Por que torço para que Bolsonaro morra”.
A Constituição Federal talvez seja uma das mais avançadas do mundo em termos de liberdade de expressão e de imprensa, proibindo expressamente a censura. No entanto, o cerceamento a essa liberdade está presente no cotidiano em numerosas situações. Não há, de fato, um órgão censor no país. A censura prévia foi extinta há mais de quarenta anos e vedada na Constituição Federal de 1988. Mas outros tipos de cerceamento, mais ou menos sutis, ainda vigoram ou vigoraram por anos, coexistindo com a própria Constituição.
Outro exemplo de entulho autoritário que conviveu pacificamente com a Constituição Federal por mais de vinte anos foi a Lei de Imprensa (Lei n.5.250/67), que previa nos artigos 14 e seguintes, pena de prisão para diversos delitos, como “ofender a moral e os bons costumes” ou publicar “fatos verdadeiros truncados [...] que provoquem”, entre outros, “perturbação da ordem pública” e “sensível perturbação na cotação das mercadorias”. Essa lei foi submetida a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, com propositura de uma ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) pelo PDT, mais especificamente pelo deputado Miro Teixeira, do Rio de Janeiro. ADPF é um tipo de ação que tem por objetivo questionar a constitucionalidade de leis perante o STF. O deputado moveu a ação em 2008 para questionar a constitucionalidade da Lei de Imprensa, por entender que a Constituição Federal, que contém diversos dispositivos que protegem a liberdade de expressão e proíbem qualquer tipo de censura, não permitia que uma lei como aquela permanecesse vigente. A ação foi julgada procedente, e a Lei de Imprensa foi revogada.
O documento que saiu desse julgamento do STF, de autoria do ministro relator Carlos Ayres Brito, é provavelmente o maior libelo a favor da liberdade de expressão no país. Vale dizer que Miro Teixeira, ele próprio advogado, foi impulsionado a entrar com essa Ação no STF em razão de um episódio de assédio judicial sofrido pela jornalista Elvira Lobato e pela Folha.
Em 2024, o STF reconheceu a existência do assédio judicial no julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Abraji (ADI 7055). O assédio é caracterizado pelo mau uso do direito de ação, geralmente sob a forma de processos movidos contra jornais e/ou jornalistas com o objetivo principal, não declarado, de intimidá-los. O caso vivido por Elvira Lobato é exemplar. Por conta de uma reportagem publicada em 2007 na Folha, em que a jornalista mencionava bens de propriedade da Igreja Universal, mais de cem fiéis ingressaram com processos contra o jornal e a jornalista nos locais mais retirados do país. Nenhum dos processos teve trâmite em capital de Estado. Todos foram propostos, quase que simultaneamente, em diversos municípios, reproduzindo essencialmente o mesmo texto e revelando a existência de um comando por trás da aparente legitimidade de sua propositura.
Algumas leis, embora tenham sido promulgadas já no período democrático, a partir de 1985, também contêm dispositivos que podem ser extremamente prejudiciais à liberdade de expressão e de imprensa. É curioso, mas o Direito tem dessas coisas: pode servir como instrumento para controlar e combater o autoritarismo, mas também como forma de impô-lo. Esses dois papéis podem coexistir no tempo.
Veja-se, por exemplo, o Código Civil. Em 2001, o Congresso aprovou o Código Civil atual, sancionado em 2002, quatorze anos depois da promulgação da Constituição Federal. Nele, três dispositivos chamam atenção por sua completa dissonância em relação aos dispositivos da Constituição no que se refere à atividade de imprensa. São os artigos 17, 20 e 21. Eles dispõem, respectivamente, que o nome da pessoa não pode ser usado em publicações que a exponham ao desprezo público; que a divulgação da imagem de uma pessoa pode ser proibida, a seu pedido, se lhe atingir a honra, a boa fama, ou a respeitabilidade; e que a privacidade das pessoas é inviolável. Esses dispositivos são fatais para a imprensa. Com base neles, pessoas - sobretudo as que ocupam cargos públicos - requerem (e obtêm) ordens de remoção de conteúdo de sites de notícias ou conseguem proibir sua publicação.
A publicação e o armazenamento de informações na Internet, quaisquer que sejam, são importantes aliados da educação e da investigação histórica, em razão da facilidade de acesso e da gratuidade na maior parte dos casos. Nesse sentido, a determinação de retirada de conteúdo mostra-se inconstitucional e consubstancia verdadeira censura. Esses dispositivos do Código Civil já foram questionados perante o STF quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815, em 2015, prevalecendo sua interpretação conforme a Constituição Federal e vetando, portanto, qualquer imposição de retirada de conteúdo no que se refere à publicação de biografias - mas permanecem em vigor para tudo que se refira à imprensa.
Insegurança jurídica e desinformação
A convivência de dispositivos legais de cunho autoritário - tais como a Lei de Segurança Nacional, a Lei de Imprensa e os artigos do Código Civil citados - com a Constituição Federal, garantidora da liberdade de imprensa, dá a dimensão da ausência, no país, de um contorno conceitual estruturante da liberdade de expressão e talvez explique um pouco a facilidade com que a desinformação se disseminou por aqui. Embora a Constituição Federal tenha adotado princípios de plena liberdade, proibindo a censura expressamente, o país consegue se equilibrar entre regras absolutamente incompatíveis. Difícil entender o que pode acomodar a convivência de textos legais tão díspares, senão a total falta de compreensão da função e da relevância da atividade de imprensa.
A desinformação, que já era uma realidade no mundo em 2016, agravou-se no país nas eleições presidenciais de 2018 e institucionalizou-se a partir de 2020 com a pandemia de Covid-19. Sob o governo de Bolsonaro, ações de desinformação se multiplicaram, com o próprio presidente da República propagando informações falsas, aprofundando divergências e incitando discursos estigmatizantes. Desde então, agressões verbais, ações violentas ou intimidantes, restrições de acesso à informação e uso abusivo de processos judiciais são facilmente identificadas no cenário brasileiro.
O assédio judicial é o exemplo mais cruel de instrumentalização do Poder Judiciário, com a finalidade específica de cercear a crítica. São processos judiciais movidos por políticos ou organizações com a finalidade de intimidar jornalistas, comunicadores ou ativistas, forçando-os a abandonar suas investigações. Em alguns casos, a ameaça de instauração de processos é suficiente para provocar o efeito desejado e interromper a investigação ou sua divulgação. O abuso tem natureza inibidora e vexatória. O objetivo não é necessarimente ganhar o processo, mas desviar atenção e energia, como estratégia para abafar críticas legítimas.
Do mesmo modo, ataques misóginos e intimidações de jornalistas mulheres e LGBTQIA+ são cada vez mais comuns, sobretudo depois de 2019, quando se instalou no país um governo que viola princípios de direitos humanos e acordos internacionais, como exposto no início deste artigo. Desde então, o ambiente no Brasil se tornou especialmente inseguro para quem atua na área da comunicação e, consequentemente, o livre fluxo da informação foi duramente atingido.
A rede latino-americana Voces Del Sur (VdS) relata o sufoco vivido no país em relatório que monitora a proteção da liberdade de expressão na América Latina:
Liderado por seu chefe de Estado, o governo brasileiro estigmatiza jornalistas, corrói a confiança do público no jornalismo e incentiva a violência de seus apoiadores. Em 2020, o parceiro VdS ABRAJI registrou um total de 419 alertas. O crescimento de 222% no total de alertas em 2020 está diretamente relacionado ao aumento colossal de 489% nas agressões e ataques. O Estado brasileiro foi identificado como agressor em 74% de todos os alertas. Políticos e autoridades do judiciário seguem o exemplo do presidente, usando os tribunais para silenciar jornalistas; os processos judiciais criminais e civis contra a mídia e jornalistas aumentaram de 8 para 39 casos em 2020, ou 388%. As detenções arbitrárias aumentaram 200%, o discurso estigmatizante, 169%, as restrições à Internet, 167%, as restrições ao acesso à informação, 86%, e o uso abusivo do poder do Estado, 83%. (Voces del Sur, 2021, p.41)
No livro Como as democracias morrem, lançado em 2017, os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018) listam quatro indicadores de comportamento autoritário aos quais, segundo suas pesquisas, é preciso estar atento. Um deles, o número 4, é descrito como a “propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia”. Na obra, os autores esboçam um check list com a finalidade de ajudar os cidadãos a reconhecer tal propensão:
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Apoiaram leis ou políticas que restrinjam liberdades civis, como expansões de leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam protestos e críticas ao governo ou certas organizações cívicas ou políticas?
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Ameaçaram tomar medidas legais ou outras ações punitivas contra seus críticos em partidos rivais, na sociedade civil ou na mídia?
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Elogiaram medidas repressivas tomadas por outros governos, tanto no passado quanto em outros lugares do mundo?
Bolsonaro ainda não havia sido eleito quando o livro Como as democracias morrem se tornou best-seller, mas a descrição feita pelos autores lhe coube muito bem.
O jornalismo como termômetro da deterioração democrática
Os ataques à liberdade de expressão como um todo, e à de imprensa em particular, ajudaram a colocar o Brasil no grupo de países mais afetados pela “terceira onda da autocratização”. Tal onda vinha sendo identificada por cientistas políticos, entre eles os já citados Levitsky e Ziblatt. Foram, no entanto, Anna Luhrmann e Staffan Lindberg (2019) os primeiros a sistematizar evidência quantitativa a respeito, incluindo o Brasil no clube. “Os retrocessos democráticos em países tão diversos como Brasil, Burundi, Hungria, Rússia, Sérvia e Turquia desencadearam uma nova geração de estudos sobre democratização”, escreveram (ibidem).
A teoria das ondas de democratização e autocratização se disseminou a partir do livro A terceira onda, do cientista político Samuel Huntington. Segundo ele, a primeira onda de democratização teria sido a instauração lenta de regimes de liberdade no ocidente, com Constituições e sistemas eleitorais, ao longo dos séculos XVIII e XIX. O reverso dessa onda veio a partir dos anos 1930 do século XX, época em que a democracia foi posta à prova em regimes como o fascista italiano e o nazista alemão. Seguiu-se, após a Segunda Guerra Mundial, a segunda onda de democratização, em que se viu a restauração de vários regimes de liberdade na esteira da vitória dos Aliados. Logo depois, estabeleceu-se a polarização da guerra fria - e, com ela, a segunda onda de autocratização. De um lado, a instalação de ditaduras comunistas fomentadas com o apoio da extinta União Soviética. De outro, ditaduras de direita estabelecidas sob o pretexto de evitar a proliferação do comunismo - casos do franquismo espanhol, do salazarismo português e das ditaduras militares latino-americanas, como as do Brasil, Argentina, Chile e Uruguai (Huntington, 1993).
O livro de Huntington, A terceira onda, se inicia quando tais ditaduras começam a ruir - precisamente, segundo o autor, aos 25 minutos do dia 25 de abril de 1974, momento em que capitães do exército português deixaram os quarteis para derrubar o que restava do regime salazarista na Revolução dos Cravos. Seguiram-se, nos anos seguintes, as derrubadas dos regimes autoritários do sul da Europa e das ditaduras militares latino-americanas. O livro de Huntington não menciona a queda das ditaduras do leste europeu que se seguiu à queda do Muro de Berlim, em 1989, nem à derrocada da União Soviética, em 1991 - mas, por fidelidade ao conceito, tais episódios claramente se alinham à terceira onda de democratizações, visto que pertencem ao mesmo contexto pós-guerra fria.
Rastrear uma terceira onda de autocratizações se tornou um desafio para a ciência política, visto que, como Levitsky e Ziblatt (2018) apontam em seu livro, golpes e revoluções saíram do cardápio das democracias ocidentais. A destruição dos regimes de liberdade passou a se dar “por dentro”, de forma insidiosa, tendo como agentes os próprios governantes, eleitos conforme as regras da democracia, que passam a usar o próprio poder para minar aos poucos as instituições democráticas. Necessitava-se, assim, de uma ferramenta capaz de medir, como um sismógrafo, as oscilações nas diversas instâncias de qualidade da democracia.
Tal ferramenta surgiu com os observatórios de qualidade democrática, como a Freedom House americana, a The Economist britânica e o V-Dem, rede internacional formada por acadêmicos de vários continentes e sediada em Gotemburgo, na Suécia. Luhrmann e Lindberg sistematizaram o conceito empírico de autocratização a partir de dados do V-Dem, a ferramenta mais utilizada em pesquisas acadêmicas. Todos os observatórios, no entanto, em maior ou menor escala, descendem de um princípio teórico comum. Tal matriz teórica parte da obra do cientista político americano Robert Dahl (1971), criador do conceito de “poliarquia”. Ele propunha, em síntese, que se fosse além das duas dimensões clássicas da democracia: a “eleitoral” - a existência de pleitos livres e justos - e a “liberal” - a preservação das liberdades individuais fundamentais, como a de expressão e associação, e que na prática significava a garantia de que as maiorias não tiranizariam as minorias.
Inspirados em Dahl, os institutos observadores da qualidade democrática, notadamente o V-Dem, analisam outras dimensões da democracia, como a deliberativa e a participativa. Segundo essa ideia, em democracias saudáveis, os cidadãos não devem participar apenas na hora de votar, mas também nos períodos entre eleições - em conselhos participativos, em passeatas, ou em interação com os eleitos por meio de canais formais e informais, usando eventualmente ferramentas digitais (De Lima, 2021).
A ideia de que a democracia é o processo histórico de ampliação de direitos políticos e civis perpassa a obra de Dahl (Leiras; Malamud, 1994), o que inclui o aumento da participação política e a elevação da qualidade do debate público (Dahl, 1971). Entre os pré-requisitos para a boa qualidade do debate público, destaca-se o pressuposto de Hannah Arendt (1967), segundo o qual a discussão, nas democracias, deve se assentar sobre a verdade factual: eventos que ocorreram no passado, devidamente documentados ou presenciados por várias testemunhas.
Em obra que revê e atualiza o conceito de Hannah Arendt para o momento em que vivemos, quando a desinformação prolifera, Eugênio Bucci enfatiza o imperativo ético de uma imprensa orientada por fatos e destaca a contribuição desse imperativo para a manutenção de um ambiente social marcado por “padrões respeitosos de convivência”:
Em nosso tempo, a imprensa, a política e o debate público devem se contentar com uma verdade, portanto, que seja menos pretensiosa que a verdade política e a verdade religiosa. A verdade factual se erige apoiada estritamente nos acontecimentos. O que dizer hoje, então, das noções mais grandiloquentes de verdade? O que dizer das verdades libertadoras, quase absolutas, que tantas vezes foram e ainda são invocadas por políticos e jornalistas? [...] A verdade factual não encerra promessas tão retumbantes, mas, talvez por não ter a pretensão de impor-se como o universal e como o absoluto, ajude as pessoas a se emanciparem e a guardarem, entre si, padrões racionais e respeitosos de convivência. (Bucci, 2019, p.12)
Muito além das “instituições que funcionam”
O ponto central é que tais aspectos da democracia que vão além da existência de eleições livres e justas e da garantia dos direitos individuais - caso da liberdade de imprensa - tornaram-se termômetros inescapáveis para medir a qualidade das democracias, e, por extensão, sismógrafos de processos autocratizantes. No caso brasileiro, a perseguição a jornais e jornalistas se tornou um dos grandes sinais de deterioração da democracia, segundo os institutos que medem a qualidade dos regimes de liberdade.
Tais institutos dão materialidade aos conceitos propostos por Levitsky e Ziblatt (2018), além de facilitar sua operacionalização. Dados do V-Dem mostram que países se tornam autocracias de acordo com quatro processos principais: (i) golpe militar, (ii) autogolpe, (iii) invasão externa e (iv) erosão democrática. Os três primeiros predominaram entre 1900 e 1993. A partir de 1994, a erosão democrática se tornou o método dominante, respondendo por 70% dos processos de autocratização, contra 30% dos golpes clássicos (Luhrmann; Lindberg, 2019).
Os autores assim definem erosão democrática:
Os incumbentes acessam legalmente o poder e, então, gradualmente, mas substancialmente, minam as normas democráticas sem abolir as principais instituições democráticas. Tais processos respondem por 70% dos casos na terceira onda de reversão, com exemplos proeminentes dessa deterioração gradual na Hungria e na Polônia. Os aspirantes a autocratas encontraram claramente um novo conjunto de ferramentas para permanecer no poder, e essa notícia se espalhou. (Luhrmann; Lindberg, 2019, p.1.105, tradução nossa)
Nos três processos clássicos, golpe militar, autogolpe e invasão externa, é relativamente fácil perceber quando uma democracia degenera em ditadura: uma ou mais instituições democráticas são abolidas abruptamente. Na erosão democrática, as “instituições continuam funcionando”, conforme o clichê consagrado no debate brasileiro, mas a autocracia se instaura aos poucos.
Os institutos de medição da qualidade democrática ajudam a rastrear tais processos sutis. Sua metodologia de avaliação, com algumas diferenças, consiste em convidar anualmente especialistas para atribuir notas a diversos quesitos da qualidade democrática. Quando a soma das notas passa a cair sistematicamente, os institutos identificam um processo de autocratização.
Dizer que uma nação enfrenta um processo de autocratização não significa que tal país caminha inexoravelmente para se tornar uma ditadura. Há vários desfechos possíveis. Um país pode seguir sendo democrático, mas a qualidade de sua democracia piora, gerando preocupação, como observado no Brasil na virada da década - ou nos Estados Unidos desde a volta de Trump. Ali, somente nos rankings de democracia dos próximos anos teremos a medida exata dos estragos institucionais que o presidente americano vem perpetrando. Outras vezes o país muda de patamar. Foi o que aconteceu recentemente com a Índia, que, na classificação do V-Dem, caiu do nível “democracia eleitoral” para “autocracia eleitoral”. Nos dois casos, frações da sociedade civil que constituem a comunidade do conhecimento - a academia e a imprensa - sofreram os efeitos da ação de um autocrata, o que ajuda a intensificar a erosão democrática.
O relatório do V-Dem de 2022 listou os dez países em que a nota da democracia mais se deteriorou no último decênio. O Brasil fez sua estréia naquela edição do top ten, ao lado de Ilhas Maurício, Polônia, Hungria, Índia, Benin, Sérvia, El Salvador, Mali e Turquia (V-Dem, 2022). O dado preocupante é que, dez anos antes, todos esses países eram considerados democráticos. Dois deles, Polônia e Ilhas Maurício, eram considerados “democracias liberais”, o patamar mais alto do ranking do V-Dem, e oito “democracias eleitorais”. Em 2022, sete eram considerados autocracias, e um deles - o Mali - recuara para “autocracia fechada”, ou seja, uma ditadura explícita. Restavam como “democracias eleitorais” - categoria ainda democrática, mas inferior a “democracia liberal” - o Brasil, as Ilhas Maurício e a Polônia.
O que fez a nota brasileira desabar? O cientista político Fernando Bizzarro aponta a deterioração das liberdades de imprensa e acadêmica como fator fundamental. Tomando como base os dados do V-Dem em 2021, a nota da liberdade de imprensa no Brasil caiu de 3,7, num máximo de 4, para 2, ao longo dos dez anos medidos pela plataforma. A nota de liberdade acadêmica também caiu, de 3,7 para 2,08 (V-Dem, 2021). Segundo Bizzarro (2021), “embora não haja censura formal no Brasil, os especialistas acharam que o assédio a jornalistas e acadêmicos de esquerda, por parte de aliados do governo, representava algo digno de monitorar” (apud De Lima, 2021, p.35).
Também usando os dados do V-Dem, Bizarro e Coppedge (2017) analisaram o histórico brasileiro de qualidade democrática. A conclusão deles é que existe uma evolução em espiral na democracia brasileira. A curva tem uma primeira alta na República Velha (1889-1930), cai no período getulista (1930-1945), volta a crescer entre 1946 e 1964, atingindo patamares mais altos que os anteriores, e cai novamente após o golpe militar de 1964, para subir e atingir seus níveis mais altos na redemocratização, a partir de 1985 (Bizzarro; Coppedge, 2017; De Lima, 2021). Segundo Bizzarro, a deterioração recente começa no governo de Michel Temer, quando se verifica uma erosão no “componente liberal da democracia”, que mede a capacidade do Legislativo e do Judiciário de fiscalizar o Executivo. “Entre outras coisas, os especialistas acharam que o combate à corrupção no governo Temer não foi tão veemente quanto no governo Dilma. Ou seja, o Congresso e o Judiciário se tornaram menos capazes de fiscalizar o Executivo”.
Considerações finais
A boa notícia é que a democracia brasileira tem dado sinais de regeneração. No ranking do V-Dem publicado em 2024 o Brasil apareceu em posição de destaque como exemplo de recuperação democrática, em um caso clássico em que os indicadores melhoram depois de piorar. A troca de inquilinos no Palácio do Planalto em 2023 pode ser vista como um ingrediente nessa recuperação.
Ainda assim, é bom estar alerta. O exame da literatura recente sobre autocratização, cotejado com a observação atenta das declarações e atitudes autoritárias do ex-presidente do Brasil, bem como com os episódios periódicos de assédio judicial, descredibilização da imprensa, desinformação e perseguição a jornais e jornalistas, permite algumas conclusões.
Numa era em que as democracias já não morrem vítimas de golpes militares, autogolpes e invasões externas, mas pela erosão de suas instituições, é essencial monitorar os indicadores de democracia. Observatórios de qualidade democrática operacionalizam esse tipo de monitoramento.
O que o monitoramento das atitudes dos governantes e os rankings de democracia anunciam, em síntese, é que se deve prestar atenção aos ataques a jornais e jornalistas, em especial quando promovidos ou permitidos por agentes públicos atribuídos de poder institucional e do dever de zelar pelos direitos constitucionais. É igualmente necessário atentar para o processo de deterioração do debate público num ambiente crescente de desinformação. Como as plantas boiando no mar, que prenunciam terra à vista, esses movimentos podem ser a antessala do que os cientistas políticos do V-Dem chamam de “autocracia fechada”, expressão que significa nada menos que um autoritarismo difícil de reverter. Em outras palavras, uma ditadura explícita.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
29 Nov 2022 -
Aceito
20 Mar 2023