Open-access Do jornalismo transnacional aos experimentos em blockchain no combate à desinformação

RESUMO

A desinformação mina valores da cultura democrática, como a livre circulação do diverso e do contraditório, expressas no jornalismo pelo exercício do direito à informação. Este estudo contextualiza e lança perspectivas sobre como sociabilidades de descentralização por meio do jornalismo transnacional, da validação de dados por agências de checagem de informações e de experiências de uso de tecnologia blockchain constrangem a indústria das mensagens falsas. Tais decursos têm o potencial de mitigar problemas relativos à liberdade de imprensa, desde ameaças à integridade física dos jornalistas, até enfrentar o capitalismo de vigilância e a ditadura de algoritmos das big techs que modulam a esfera pública com interesses escusos.

PALAVRAS-CHAVE:
Democracia; Desinformação; Descentralização; Jornalismo transnacional; Blockchain; Agências de checagem

ABSTRACT

Disinformation undermines the values of democratic culture, such as free circulation of the diverse and contradictory, whose expression in Journalism is the exercise of right to information. This article contextualizes and launches perspectives on how decentralized sociabilities through transnational journalism, data validation by fact-checking agencies and experiences of using blockchain technology constrain the fake messages industry. These methods have the potential to mitigate problems related to freedom of the press, from threats to the physical integrity of journalists, to confronting surveillance capitalism and the algorithm dictatorship from big techs that modulate the public sphere with hidden interests.

KEYWORDS:
Democracy; Disinformation; Decentralization; Transnational journalism; Blockchain; Fact-checking agencies

A proposta é trazer a análise da prática participativa de sociabilidades de descentralização do Jornalismo Transnacional (JT), do desenvolvimento de validação de dados das agências de checagem de informações (especialmente, desinformação) e experiências de uso de tecnologia blockchain -, no contexto de processos e instituições do ecossistema jornalístico dos anos de 2010 a 2020. Partimos da hipótese de que as três instâncias aliadas a um aporte na educação midiática (com força-tarefa urgente e execução constante em longo prazo) podem ser capazes de confrontar o distúrbio informacional, que afeta a cultura democrática, no sentido de permitir que o jornalismo siga a missão maior: a fiscalização dos poderes no intuito de entregar os fatos de interesse público.

Antes de apontar achados de leituras de ordem comunicacional e, com ela, a jornalística, a ideia é contextualizar como ações políticas com recursos tecnológicos fizeram que a desinformação disseminada, especialmente a partir de meados dos anos 2010, acendesse um sinal de alerta para as democracias. De um lado bom, a capacidade de processamento de informação permitiu que mesmo pequenas redações fizessem trabalhos investigativos que antes apenas conglomerados eram capazes; de outro lado, ruim, vazamentos massivos de informações privadas e doxing ocorreram contra jornalistas. Ou seja, o potencial de produzir informação se irradia exponencialmente, da mesma maneira que em paralelo ocorre a desinformação. Porém, em volume, escala e velocidade maiores.

O termo “fraude” está tipificado em códigos penais, mas se expande popularmente na medida em que a capacidade humana de forjar resultados se alavanca em tecnologias, especialmente as numéricas. Revisita questões como o charlatanismo, o ludíbrio, a enganação e alcança questões digitais, como o hoax e o phishing. A artimanha embutida na fraude ronda a área de contabilidades - de universidades a palácios da política. Curiosamente, o vocábulo “accountability”, ligado à ideia de “auditoria”, não é indiferente à indústria do jornalismo, termo relacionado a comportamentos “antifraude” e que passou a circular mais amiúde na bibliografia acadêmica no início dos anos 2000 em obras como as de Claude-Jean Bertrand. Aliás, período em que o jornalismo enfrentou uma crise de credibilidade, lançando dúvidas sobre sua capacidade de fiscalizar o Estado e o mundo corporativo.

É preciso, porém, ter em mente que nem sempre o cidadão comum terá capacidade de averiguar por si só o que é necessário auditar, mesmo quando há transparência de dados. Como explica Dawn Oliver, pesquisador de Direito Constitucional, accountability “relaciona-se à exigência de uma pessoa explicar e justificar - com base em critérios de algum tipo - suas decisões ou atos, depois reparando as falhas ou erros” (apud Yeung, 2020, online).

Ações incansáveis das agências de checagem e o trabalho sistemático do jornalismo investigativo (inclusive aquele de caráter transnacional) recuperam preceitos de racionalidade por meio da qualidade da informação. Um exemplo é voltar aos princípios de serviços de repositório de informação como nos moldes do esquema da “Wikipédia libertária: feita pelos cidadãos em sistema colaborativo” (Morozov, 2018, p.21), no qual edições constantes são aprimoradas.

Como é bem sabido, a era digital possibilitou, entre outros fatores, a intensidade de participação e expressão das pessoas. Em um mundo de transparência e, em muitos casos, de fonte aberta, no qual qualquer indivíduo pode ser um “veículo” de comunicação, incita o aumento da desinformação de quem não conhece a prática do jornalismo. O acirramento da extrema direita na esfera pública se deu por meio do ciberespaço e propiciou novas formas de violência contra jornalistas.

Um fenômeno de “censura da multidão” conduz a uma “demonização populista da imprensa”, conforme indica Silvio Waisbord (2020), e, não raro, a “pontos cegos do direito de liberdade de expressão” promovem discursos que minam a democracia. Até porque a “trollagem anti-imprensa” não se baseia em valores dialógicos de racionalidade, compreensão, igualdade e tolerância. Enquanto o conteúdo qualificado por jornalistas possui apuração e indicação de checagem de informações, visualização transparente de dados, fontes à vista, enfim, ele difere daqueles que não são moldados segundo as regras éticas do jornalismo. Esses, muitas vezes não passam de rumores ou mensagens “plantadas” com vistas a vantagens escusas, para as quais o jornalismo representa um obstáculo.

A hipótese é que ações de ordem descentralizadas - neste texto destacamos o jornalismo transnacional e os experimentos em blockchain - têm o potencial de destravar processos comunicacionais que envolvem a liberdade de imprensa tanto diante de ameaças à integridade física dos profissionais, como quando o capitalismo de vigilância e a ditadura de algoritmos de grandes corporações conflagram um cenário mais dado à distopia que à utopia, se fizermos projeções de futuro.

A prática das fake news como componente do sistema desinformativo

Antes de tudo, a expressão “fake news” não pode ser traduzida ao pé da letra, porque se são fakes não são news, pois, no jornalismo, em princípio, não existe notícia falsa, tanto que uma das regras é a checagem dos fatos antes da publicação (Prado, 2019). Mas é assim que são conhecidas as informações, ou melhor dizendo, mensagens fraudulentas proliferadas na atual era da pós-verdade pela qual o mundo vem passando de forma descontrolada. Portanto, por motivos óbvios: para um fato se tornar notícia, a prioridade, entre as várias regras éticas da imprensa, é que ele seja verdadeiro, isto é, uma verdade factual - expressão cunhada por Hannah Arendt, no ensaio “Verdade e Política” publicado na revista The New Yorker, em 1967 (Prado, 2022).

De modo geral, as pessoas confundem notícias e informações com mensagens fraudulentas ou frágeis; mensagem falsa (em geral, com fontes forjadas), manipulada, adulterada ou fabricada (com a intenção de enganar); desinformação (criada para prejudicar) ou má informação (sem apuração ou mal apurada [misinformation] ou mesmo usando a verdade, muitas vezes fora de contexto, para causar danos [mal-information]); notícias antigas requentadas; sensacionalismo (próprio dos tabloides); mentiras, maquiagens, boatos, hoax, fatos alternativos etc., e com a carga que trazem, em geral perspicaz, porque geram todo tipo de emoção (boa ou ruim, dependendo da crença de cada um), fazem que grande parte dos usuários não desvie o olhar, tamanha é a atratividade (Prado, 2022).

Mas o que vemos é que as mensagens fraudulentas, também conhecidas contraditoriamente como fake news, mesmo com o adendo de que são mentirosas, ou melhor dizendo, informações publicadas sem apuração dos fatos, assolam a comunicação e, infelizmente, ainda não foram definidas de forma clara - seja na maneira dita à boca pequena, seja até mesmo na forma da lei -, tampouco receberam uma solução plausível. Ainda não se desenvolveu um mecanismo efetivo para validar e contrastar a desinformação com o conteúdo de qualidade, ao passo que as mensagens falsas trabalham como uma máquina de propaganda.

Ao voltarmos à questão da descentralização, ponto primordial na criação da internet, e que se torna conceito basilar da chamada cultura hacker, ideias expressas na década de 1980 mostram a importância da “descentralização do poder do conhecimento” e, logo, de seu livre acesso, como emHackers: Heroes of the Computer Revolution, de Steven Levy (1984), e em “Manifesto Hacker”, publicado em 1986 assinado pelo pseudônimo “The Mentor” (Wark, 2023). A base teórica não só sustenta as camadas propostas - prática do jornalismo transnacional, checagem de informações e uso de blockchain -, como amplifica as observações cogitadas em torno dessa triangulação, a saber: a descentralização, o hackerismo, e as questões aflitivas do antropoceno que, por conseguinte, nos leva a cogitar o “fim do mundo”.

Antes da internet, as notícias que chegavam aos leitores, e espalhavam-se na base do boca a boca (uma espécie de bolha analógica), vinham do oligopólio de algumas grandes empresas de jornalismo, chamadas de grande imprensa. Com o ciberespaço, sonhamos por cerca de vinte anos com a descentralização da informação, a liberdade de expressão e, ainda, a liberdade de imprensa, a pluralidade, e experimentamos a comunicação orbitando de todos para todos, inclusive a comunicação odienta (Prado, 2019). Certas esferas públicas conectadas e automatizadas provocam transtornos de informação dentro das plataformas e formam cisões democráticas, mesmo quando a sofisticação de suas estruturas tecnológicas é sutil e, consequentemente, menos a olho nu para escrutínio público. Apenas ignorá-las, ridicularizá-las ou banalizá-las é contraproducente (Prado, 2022).

Enquanto a sociedade - e, em especial, a comunidade jornalística, que recebe farpas de todos os lados, como se estivesse atuando no epicentro do problema da desinformação - estiver à mercê do agravamento dos sistemas pervasivos da hipervigilância cibernética e moderação de informação pelas plataformas, ou seja, empresas comerciais baseadas em algoritmos de Inteligência Artificial (IA) para interferir e modular o pensamento de um público designado (preferencialmente vulnerável), estaremos todos de mãos atadas no sentido de não ter um freio perante essa intrusão, que vem de sites especializados em mensagens falsas (por vezes sensacionalistas), mas, especialmente, das redes e suas mais rentáveis plataformas (Prado, 2021).

Liberdades e a falta delas

O conceito de democracia remonta a três grandes tradições de pensamento político - teorias aristotélica, medieval e moderna. Em alguma medida, o jornalismo consagrado a partir de meados do século XIX tem entre suas inspirações uma visão de democracia que remonta a nomes como Rousseau que, segundo Bobbio, fez coincidir o ideal republicano e democrático, baseando-se na ideia de soberania popular e que “através da formação de uma vontade geral inalienável, indivisível e infalível, [tem] o poder de fazer as leis”, ou seja, em franca contraposição à desigualdade dos regimes monárquicos e despóticos (Bobbio, 1995, p.322-3).

Jornalismo e democracia se vincularam historicamente na defesa e promoção do direito à liberdade de expressão e de imprensa. No século XXI, por outro lado, uma das “novidades” foi o estabelecimento de uma “censura da multidão”. Silvio Waisbord (2018) destaca em artigo Mob Censorship que a circulação de discursos construídos em zonas cegas de liberdade de expressão mina o exercício desse direito. No caso brasileiro, manifestações públicas por intervenção militar podem servir de exemplo de uso do conceito de liberdade de expressão para defender um modelo político baseado na censura à imprensa.

A atuação das agências de checagem e de consórcios de colaboração investigativa transfronteiriça envolvendo jornalistas, ambos os casos trabalham com o teste de hipóteses, ocorre numa época em que a esfera comunicacional é afetada por ocorrências sociais na emergência da indistinção entre crenças em geral (sobretudo aquelas que cegam as pessoas perante a verdade factual) e crenças verdadeiras e justificadas. Vale recordar acontecimentos como o roubo de dados pela Cambridge Analytica, a manipulação de eleitores na eleição de Trump, o plebiscito do Brexit e o “gabinete do ódio” de Bolsonaro.

Na medida em que os estudos em Comunicação e Jornalismo se detiveram na questão da desinformação, a esfera pública era ocupada crescentemente por teorias da conspiração e discursos de movimentos de extrema direita. A descrição e a análise de tais problemas costumam ser mais lentas do que a capacidade de eles se adaptarem a ambientes sociais e digitais em transformação. A falta de cibersegurança também se relaciona a ameaças a direitos básicos em democracias. Daí a centralidade do jornalismo na preservação da democracia, como contrapoder. “À luz da Teoria Democrática, o jornalismo vigia e controla os outros poderes, baseando-se no princípio da liberdade de expressão, em especial na sua vertente da liberdade de informação (liberdade de informar, informar-se e ser informado)”, ressalta Sousa (2006, p.195).

Sabemos que com a informação correta, as pessoas podem formar suas opiniões e orientar decisões na vida pública. Sobre leis de liberdade da informação, Morozov (2018, p.112) acredita que “vivemos em uma era de profunda assimetria epistêmica. A hipervisibilidade do cidadão como indivíduo, monitorado por todo tipo de dispositivo inteligente, é acompanhada da crescente hiperinvisibilidade de todos os outros agentes”. Ao considerar a erosão da democracia diante de desinformação, vale observar o papel de plataformas digitais como o Facebook e o Google, identificadas entre as maiores responsáveis por hospedar e monetizar a desinformação, mesmo com iniciativas - ainda insuficientes - de tentar controlar a desinformação. É bom frisar que os dados utilizados são fornecidos pelos próprios usuários, para não dizer trabalhadores que cedem seu tempo e informações pessoais gratuitamente para os gigantes da indústria digital (Morozov, 2018).

Infraestrutura de autenticidade descentralizada do jornalismo transnacional

O Jornalismo Transnacional (JT) ganhou visibilidade a partir dos anos 2010 por séries como SwissLeaks e Panama Papers. Conforme define Brigitte Alfter (2019), trata-se de uma modalidade de jornalismo em colaboração praticado com perspectiva global e que possui quatro características principais - jornalistas de diferentes países, trabalho organizado em torno de ideia de interesse mútuo, reunião e compartilhamento de material e publicação orientada para as próprias audiências (Demeneck, 2016).

Com sede em Washington DC, o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) tornou-se uma referência mundial na coordenação de reportagens transnacionais relacionadas a vazamentos financeiros, evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Em 2017, o consórcio ganhou o Prêmio Pulitzer pela coordenação do Panama Papers. Em 2021, o trabalho de combate aos fluxos secretos de capitais lhe rendeu indicação ao Prêmio Nobel da Paz.1

Lá em abril de 2013, o lançamento da série OffshoreLeaks pelo ICIJ “agendou” os meios de comunicação mais prestigiados do planeta. Ela derrubou muitos ministros, dificultou a vida de mafiosos e sonegadores de impostos e veio a ser um dos modelos de colaboração transfronteiriça para as décadas seguintes. No OffshoreLeaks, 86 jornalistas de 46 países expuseram mundialmente o universo dos “paraísos fiscais” após 15 meses de trabalho em torno de um banco de dados composto por 2,5 milhões de arquivos - um volume 160 vezes maior que aquele vazado pelo WikiLeaks.

Ao aumentar a rede de colaboradores e impacto, o ICIJ coordenou em 2016 o Panama Papers. A partir de vazamentos de dados da Mossack Fonseca, escritório de advocacia com sede no Panamá, uma equipe de mais de 370 jornalistas de 76 países distribuídos em mais de 100 organizações de notícias expôs participações offshore de 12 líderes mundiais. Em 2021, Pandora Papers foi apresentada pelo ICIJ como sendo “a maior investigação da história do jornalismo” por congregar mais de 600 jornalistas de 150 meios de comunicação em dois anos de investigação em torno de quase 12 milhões de arquivos confidenciais com o objetivo de revelar segredos financeiros de 35 lideranças mundiais e de mais de 330 políticos e funcionários públicos em 91 países.

O JT de alguma maneira ajudou a transferir o protagonismo investigativo do repórter “lobo solitário” para a figura do colaborador em rede. Em lugar de um só vigilante, despontou no prado jornalístico uma matilha de “cães de guarda” oriunda de diferentes países. Representa uma mudança de mentalidade que se soma a esforços coletivos extracorporativos, a começar pela questão do financiamento. Se falta dinheiro para pagar mais de 150 jornalistas em torno de uma investigação, um consórcio pode ligar dezenas ou centenas de profissionais cobrindo seus próprios custos (Columbia Journalism Review, 2015).

O papel fiscalizador do jornalista passa nos anos 2020 por sua capacidade de estabelecer e operar dentro de uma rede de contatos. Tal necessidade se reforça quando a cobertura exige um maior número de viagens, o domínio de outros idiomas e o contato com diversas instâncias administrativas. Segundo Alfter, a metodologia transnacional de reportagem permite reduzir custos e até mesmo riscos. No entanto, o levantamento de informações jamais ignora as tradições locais de mídia. As histórias precisam ser moldadas conforme o padrão cultural local para que tenham impacto.

Dirigido por María Teresa Ronderos, o Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP) é uma referência continental em investigações transnacionais, como Transnacionales de la fe. Feito em parceria com a Columbia Journalism Investigations, da Universidade de Columbia, o primeiro conjunto de reportagens reuniu jornalistas de 16 meios para denunciar a influência de pastores evangélicos na implantação de uma agenda fundamentalista no continente sob proteção de Donald Trump. No Peru, México e Equador, a série expôs igrejas evangélicas e centros psicológicos cristãos que promovem “terapias” para a população LGTQIA+ usando métodos considerados como tortura pela ONU.

Em Migrantes de Otro Mundo, o CLIP coordenou a colaboração durante 9 meses de trabalho entre 40 profissionais de imprensa distribuídos em 18 meios de comunicação de 14 países, entre eles, jornalistas de Camarões, Índia e Nepal para poder contar a saga de migrantes que atravessam a América Latina rumo aos países do Norte. No Projeto Miroslava, o CLIP apoiou e ampliou uma iniciativa mexicana de jornalistas investigativos anônimos que formaram o Coletivo 23 de Marzo, em busca de dar visibilidade ao assassinato da jornalista mexicana Miroslava Breach e exigir punição dos responsáveis. Breach foi morta a tiros em março de 2017 em represália por investigar a suposta relação entre narcotraficantes e políticos no norte do México.

Ser jornalista em certas regiões da América Latina costuma ser tão perigoso quanto trabalhar como correspondente de guerra exposto ao fogo cruzado. Logo, para apurar e divulgar temas de interesse público interessa cuidar da segurança de jornalistas e fontes. Em Tierra de Resistentes, o Consejo de Redacción (CdR)2 coordenou mais de 50 profissionais de 10 países na elaboração de 29 reportagens aprofundadas e que servem de amostra às 2.367 ocorrências de violência e impunidade contra líderes ambientais e suas comunidades entre 2009 e 2019 no continente. A série foi finalista do Prêmio Gabo 2020 na categoria Cobertura (Demeneck, 2021).

Os números desses projetos dimensionam os desafios de projetos de jornalismo colaborativo transnacional. A começar pela organização e administração de uma rede formada por membros de diferentes culturas (nacionais e profissionais) e com distintos níveis de acesso à tecnologia e a financiamentos. Tais colaborações costumam exigir investimentos substanciais em coordenação, em treinamento de equipe e, até mesmo, na aquisição de equipamentos de TI (Alfter, 2019; Stonbely, 2017).

Questões legais e de segurança também limitam a maior ocorrência de projetos transnacionais. Afinal, a diversidade geográfica dos colaboradores implica a exposição da investigação jornalística a diferentes normas jurídicas e a distintos graus de abertura à democracia e à liberdade de imprensa. Os coordenadores da rede precisam criar estratégias para proteger seus “elos mais fracos” das pressões econômicas e políticas, e de ameaças à integridade física dos jornalistas e à segurança dos dados (Alfter, 2019).

Checagem de fatos virou trabalho jornalístico à parte

Jornalismo se faz com verificação de fatos. No entanto, dentro do contexto da desordem da informação, “fact-checking” ganhou sentido próprio. Passou a identificar um modelo de trabalho dedicado a determinar a veracidade e a precisão de informações que ganharam visibilidade pública, como declarações de políticos e notícias (Mantzarlis, 2015 apud Wardle, 2018). Em 2023, levantamento registrou a existência de 417 agências de fact-checking atuando em mais de 100 países e 69 idiomas (Duke Reporter’s Lab, 2023).

Em paralelo, o reforço perene e insistente do que vem a ser a verdade factual, a informação precisa, a estrutura da notícia etc., estabelece um contraponto à distância em relação à desinformação. Isso se dá por parte de quem tem a missão (e mesmo a responsabilidade) de informar, é o caso do jornalismo e das bibliotecas, em parceria com quem faz o papel de vigilância permanente: as agências de checagem - a fazer um trabalho hercúleo de verificação, detecção de fontes e recontextualização de algo. O problema é que o trabalho dos checadores ocorre concomitante ao espalhamento veloz de outras mensagens falsas, mensagens falsas caleidoscópicas, estorvando possíveis reflexões e produção de respostas, o que, apesar do mérito, constitui o chamado “enxugar gelo” (Prado, 2022).

Os fatos podem ser checados e rechecados pelos fact checkers. Resta ver se há tempo para combaterem as mensagens falsas e as “realidades alternativas” que são inventadas aos borbotões. “A pós-verdade e as fake news só atacam majoritária e perniciosamente a política, mas a política, desde sempre, como nos diz Arendt, é a arte da mentira”, destaca Santaella, que completa: “Infelizmente os seus efeitos sociais são nefastos e desastrosos. É preciso dizer mais quando a realidade fala por si?”, diz Santaella em entrevista a Silva para a revista Intexto.

As mensagens falsas fizeram que os jornalistas (mesmo que não fosse, até então, responsabilidade nem função específica deles) perdessem mais tempo na infindável força-tarefa de - mensagens falsas após mensagens falsas - verificar fatos para, ao provar as fraudes, distinguir detalhadamente o que realmente é uma verdade factual daquilo que é uma mera mentira deslavada. Tudo isso apesar de os denominados agentes de checagens, que surgem na era da desordem informacional e, da necessidade de verificar as mensagens falsas, saberem de antemão que a tarefa árdua de análise de conteúdo e de contexto das barbaridades disseminadas de forma viral, não seria suficiente para saná-las por não ter o mesmo volume e a mesma velocidade dos fakers humanos e não humanos, nem o mesmo alcance das plataformas de redes sociais, impulsionado pelos algoritmos a transmitir exatamente o que os internautas querem deglutir. É preciso sublinhar que a apuração e a infatigável checagem de informações são demandas originárias dos jornalistas3 desde que eles existem. Mas é bom deixar claro que a checagem sempre foi das próprias reportagens e a novidade hoje é checagem de material alheio (Prado, 2022).

A responsabilidade pela checagem das histórias não caberia apenas à imprensa ou às empresas de comunicação, e sim às pessoas com um mínimo de instrução, às famílias e ao sistema educacional como um todo. Mesmo com o surgimento das agências de checagem de fatos, a luta por educar os consumidores acerca das “notícias” engendradas pelos fakers precisa continuar enquanto elas existirem (Prado, 2022). Deve compor tal aprendizagem o funcionamento da mídia, do trabalho de apuração do jornalista. Dessa maneira, o senso crítico do público será aguçado, fazendo com que o conteúdo seja questionado.

Experimentos em blockchain

Existe um movimento de profissionais da imprensa à procura de um futuro sustentável e transparente para restaurar a confiança no jornalismo. Em plena era da pós-verdade, com a mensagem fraudulenta reinando nas redes e em sites que imitam o jornalismo, grande parte do público foge do contraditório e prefere acreditar em quem bajula suas crenças, por ser mais confortável. O desígnio maior dos envolvidos nesse movimento é o de experimentar soluções direcionadas que empregam a tecnologia blockchain para jornalistas armazenarem metadados, tornando-os seguros. E a partir de tal recurso ratificar a prática de um jornalismo ético - para pôr abaixo a desinformação - e independente, o que contribui para não se prender a diretrizes de determinados donos de empresas de comunicação (Prado, 2020).

Como uma espécie de “nova economia”, em um modelo de negócio alternativo, aposta-se no blockchain e em criptomoeda, cujos usos são registrados em um “livro-razão digital” - um sistema de registro de transações e blocos - criptografados, vinculados e compartilhado com atualização constante. Cada bloco contém informações rastreáveis. De um lado, tenta-se garantir o sustento dos jornalistas para que possam ser remunerados e trabalhar livremente, dissociados de jogos políticos internos, e, de outro, experimenta-se a segurança em publicar em uma plataforma que se pretende inviolável, o que afugenta aqueles que querem conteúdo para distorcer e produzir desinformação.

Portanto, considera-se que parte do êxito da tecnologia blockchain recai exatamente em ser uma plataforma baseada em “blocos” distribuídos, que registram todas as alterações (um pouco como um histórico de documentos, o que faz a Wikipédia), garantindo, que o registro seja praticamente impossível de ser destruído. A ideia é escrutinar e acompanhar se vai dar certo a rede global de um serviço universal e descentralizado voltado a armazenar, além dos bits de dados, identidades e credenciais verificáveis, com o registro sequencial de todas as atividades de interesse de uma conexão de usuários formada por jornalistas, editores, checadores de fatos, designers, desenvolvedores e aqueles que consomem e apoiam o trabalho jornalístico. Assim, nossa atenção será voltada à transparência em publicar em um lugar que potencialmente garante segurança dos dados (Prado, 2020).

No caso do jornalismo, o determinante é saber que uma plataforma de blockchain é resistente à modificação dos dados que nela são contidos, o que também é útil quando é preciso proteger o conteúdo noticioso de adulterações e de censura. É uma proteção que se deve aprimorar. Haja vista que nenhum dado é apagado nas soluções em blockchain, isso faz com que a informação possa ser rastreada. E possibilita derrotar a censura porque, uma vez publicada, a notícia não pode ser removida ou alterada.

Uma plataforma descentralizada visando usar a tecnologia blockchain em nome do jornalismo é louvável, como afirma Prado (2020) ao citar exemplos de uso de plataformas por diversos jornalistas pelo mundo; e tornar as informações de uma rede independente de redações mais confiáveis, torna-se preponderante em tempos de reputação em baixa por conta da desinformação descontrolada.

Algumas das iniciativas de uso do blockchain no jornalismo, a partir de apresentações em seus sites (em tradução livre):

  • Na intenção de experimentar design de produtos e ferramentas voltadas para o usuário e tentar tornar as origens do conteúdo jornalístico mais claras para o público, foi criado o The News Provenance Project pela equipe de pesquisa e desenvolvimento do The New York Times (newsprovenanceproject.com/).

  • A Popula, uma revista de notícias, artes e cultura da web que usa blockchain para aprimorar seu fluxo de trabalho, traz a possibilidade de receber doações aos autores favoritos na criptomoeda Ethereum. Inclusive, para deixar um comentário na plataforma, é preciso pagar uma taxa de 5 centavos em Ether. Dessa forma, acreditam proteger as conversas de trolls e falsificadores, além de levantar capital para manter a plataforma livre de anúncios. A revista também armazena seu arquivo em blockchain, no intuito de torná-lo imutável e permanente (popula.com).

  • Outra é a Mindzilla, uma plataforma de notícias que utiliza as tecnologias de blockchain e IA com um modelo de financiamento baseado em token para seus colaboradores. A proposta é incentivar as instituições a publicarem as próprias pesquisas na plataforma e assim, motivar os indivíduos a compartilhar informações úteis (Valéria Serebryantseva, no Pixel.plex.io).

  • Já a Trueinchain usa blockchain para rastrear mensagens falsas e sinalizá-las com um clique. A plataforma cultiva uma comunidade global de desmistificadores que são incentivados e recompensados ​​por sua contribuição em desmantelar mentiras e fraudes. É possível inserir o link da mensagem considerada falsa e adicionar um comentário explicando por que parece falso (eu-startups.com/directory/trueinchain/).

  • Uma tentativa de cortar o modelo de publicidade digital é exemplificada pelo Universal Attention Token da SocialFlow, cuja pretensão é tokenizar diretamente a atenção do usuário e recompensar os editores pelo engajamento real de seus usuários. A blockchain entra em cena quando o SocialFlow seleciona usuários e os recompensa com tokens digitais conforme eles interagem com o conteúdo de marca publicado nos sites parceiros do SocialFlow, que seleciona esse conteúdo em um cenário mais amplo de conteúdo editorial. O movimento do usuário e as transações de token são hash e agrupados em blocos para serem validados, mais uma vez, pela rede blockchain do Bitcoin (piano.io/product/socialflow/).

Blockchains podem servir como registros seguros para metadados importantes, como o tempo de publicação de uma história, assinaturas, tags e assim por diante”, afirma Ivancsiscs (2019).

Como uma ferramenta para as equipes de vendas, os registros baseados em blockchain podem classificar e filtrar anunciantes confiáveis ​​e conteúdo de anúncio e se tornar uma alternativa ao mecanismo de leilão muitas vezes inescrutável das trocas de anúncios digitais. Essas soluções de banco de dados podem se tornar essenciais na indústria do jornalismo para criar confiança entre as organizações de mídia e entre a mídia e o público.

No entanto, é imprescindível lembrar que qualquer integrante ou usuário da cadeia pode ter acesso ao banco de dados, mas justifica-se que soluções auditáveis, produzidas, trocadas e analisadas ​​continuamente, devem também entrar em modo de redobrada vigilância constante.

Considerações preambulares

Quando observamos que experiências investigativas do JT e o trabalho de agências de checagem podem ser encarados como beneficiários do padrão hipotético-dedutivo, é porque a busca por refutar hipóteses faz parte de seus procedimentos. Em se tratando de um cenário de desinformação, importa usar métodos que consigam diferenciar discursos baseados em crenças de qualquer ordem daqueles firmados em crenças verdadeiras e justificadas, conforme a evidência e correspondência a fatos (Demeneck, 2009).

Se a “ordem de desinformação” corrói a esfera pública, reportagens coordenadas simultaneamente por jornalistas de diferentes meios e países permitem a emergência de uma infraestrutura de autenticidade descentralizada, o que nos leva a algumas conclusões preliminares, a começar por considerações relativas ao jornalismo transnacional:

  • - Trabalhar em rede diminui as chances de jornalistas serem alvo da violência. Em países como os da América Latina interessa pensar como denúncias jornalísticas não prejudiquem a segurança dos profissionais. A descentralização de uma série de JT evita que uma história seja interrompida. Eventuais ataques individuais a jornalistas podem se converter em reforço da investigação por outros membros da rede.

  • - Subsidiar discussões ampliadas sobre cidadania. O jornalismo transnacional fortalece a cultura democrática na medida em que recupera dimensões deontológicas da cidadania, extrapolando discussões de ordem legislativa e jurídica. Por exemplo: paraísos fiscais são legalizados em muitos países, mas é ético proteger fortunas enquanto explode a desigualdade entre ricos e pobres? Talvez o futuro da democracia ao redor do mundo dependa da correção das assimetrias da globalização.

  • - Formular consensos críticos. Mais que cenários de democracia em erosão, o chamado Antropoceno disparou um alerta sobre a possível extinção da espécie humana por ela mesma. Investigações transnacionais, ao trabalharem em diferentes escalas e culturas, permitem a formulação de consensos resultantes de pensamento crítico. Basta pensar em quanto o jornalismo do século XX relutou em reconhecer o aquecimento global como fato, em vez de mera opinião. O que - é evidente - jamais implicaria abrir mão de novos dissensos.

  • - Educar audiências na medida em que exercita a leitura de um jornalismo comparado. O JT é extremamente didático em termos de educação midiática uma vez que fornece rico material comparativo em conteúdos e formatos, bastando à audiência cotejar as diferentes publicações, em geral, distribuídas em simultâneo em dezenas de países, idiomas, autorias e formas de narrar. Por exemplo, quando o The Guardian ou o The New York Times haviam publicado reportagem do Pandora Papers, o público interessado poderia lançar o nome da série numa ferramenta de busca e encontrar farto material investigativo online. Ou, muito mais acessível, acessar projetos que concentram todas as investigações num mesmo site, caso dos acima citados Transnacionales de la fe, Migrantes de Otro Mundo e Tierra de Resistentes. Por comparação e contraste, constrói-se pensamento crítico.

Quanto às ações das agências de checagem, constatamos que se elas não conseguem trabalhar no ritmo da desordem informacional, por motivos óbvios, de que não é possível acompanhar a escala dos bots com disparos em massa; se a educação midiática é projeto que será consolidado apenas a longo prazo; se as regulamentações em andamento ainda necessitam de ampla discussão com a sociedade para ajustes a ser implantados e se as ações das startups em jornalismo independente ainda não conseguem apontar para um futuro possível, podemos duvidar que se esteja “adiando o fim do mundo”.

Acreditamos que o exercício do jornalismo transnacional somado ao trabalho minucioso das agências de checagem e aos experimentos com plataforma blockchain conformam conceitos e processos jornalísticos importantes para fortalecer o debate público e evitar o desmantelamento da democracia. A proposta foi a de trazer autores a ratificar a ideia de que devemos diminuir a força da plataformização (e, principalmente, de quem está por trás dela) quando usam os dados para modular o pensamento e comportamento das pessoas por interesses escusos, como nas atuais acrobacias do capitalismo, com a datificação favorecendo a mercantilização de dados hipersegmentados graças aos modelos preditivos da IA (Santaella, 2021).

Se parece ser um saudosismo das certezas da Modernidade, pode também ser uma tentativa inédita de fazer o que a Modernidade nunca conseguiu - não opor mecanismos de mundialização com os de vinculação a um solo, promovendo crítica com contextualização da informação pública. Mais: a criação de infraestruturas digitais descentralizadas pode garantir uma contínua apuração jornalística dos fatos de interesse público e a circulação de histórias que combatem a desinformação.

A tríade proposta como recursos antifraude é descentralizada porque em rede. A diversidade desse amálgama de tecnologias, conceitos e processos jornalísticos ilustra a necessidade de ampliar as respostas diante da desinformação. Como numa oposição dialética, o mesmo regime de crescente conectividade que desinforma também é aquele que multiplica pontos de apoio para a validação informativa - ainda que numa velocidade muito menor e com um custo muito maior. De modo gradativo, “checar” deixa de ser apenas jargão de jornalistas para se tornar um verbo apropriado para se conjugar ao lado de democracia.

Referências

Notas

  • 1
    Colaborador do Panama Papers, o The Guardian foi um dos que noticiou o reconhecimento com Pulitzer. https://www.theguardian.com/world/2017/apr/11/panama-papers-investigation-wins-pulitzer-prize. Sobre a indicação do ICIJ ao Nobel da Paz, acesse https://www.icij.org/investigations/fincen-files/icij-nominated-for-nobel-peace-prize-for-combating-dark-money-flows/.
  • 2
    Consejo de Redacción. Tierra de Resistentes. https://tierraderesistentes.com.
  • 3
    Watch dog journalism, expressão cunhada nos Estados Unidos, anos 1960. “O surgimento da Imprensa Watchdog, um dos conceitos mais divulgados no estudo da comunicação, baseia-se exatamente nessa noção de fidelidade e de proteção dos cães. É a representação do profissional de jornalismo como um verdadeiro cão de guarda da sociedade perante os desvios, as prepotências e as injustiças. O cão de guarda da sociedade” (Brun, 2011).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2022
  • Aceito
    20 Jun 2023
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