RESUMO
O texto interpela os diagnósticos e pânicos contemporâneos que veem uma situação de crise das ciências no Brasil. Se valendo de tais diagnósticos, propõe hipóteses reflexivas para repensar as relações e descontinuidades entre ciências e negacionismos. Contra o senso comum douto, argumenta que não é qualquer ciência que está hoje sob ataque, mas aqueles saberes e disciplinas mais diretamente vinculados a políticas públicas. Com base em surveys, argumenta também que não existe no país algo como um “movimento negacionista”, que seria o correlato exitoso de uma imaginária crise de confiança nas ciências. Em seguida, argumenta que ataques e grupos negacionistas são mais bem entendidos na tensão entre simetrização (boundary-work) e assimetria (falsas controvérsias). E, por fim, defende que é no caráter público dos alvos almejados (vacinas, universidades, políticas sociais, etc.) que confluem discursos negacionistas e neoliberais. São, enfim, hipóteses.
PALAVRAS-CHAVE:
Ciências; Política; Confiança; Crise; Negacionismo
ABSTRACT
The text engages with contemporary diagnoses that perceive a crisis in the sciences in Brazil. Drawing on such diagnoses, it puts forward reflexive agenda to rethink the relationships and discontinuities between science and denialism. Challenging conventional scholarly wisdom, it argues that not all sciences are under attack, but rather those fields and disciplines most directly tied to public policies. Based on surveys, it also contends that there is no such thing as a “denialist movement” in the country an alleged result to an imaginary crisis of confidence in science. Furthermore, it posits that denialist attacks and groups are best understood through their investment in manufacturing false controversies. Finally, it argues that the public nature of the targeted domains (vaccines, universities, social policies, etc.) is where denialist and neoliberal discourses converge. Ultimately, these are all hypotheses.
KEYWORDS:
Sciences; Politics; Trust; Crisis; Denialism
Introdução
Um espectro ronda nossas ciências - o espectro da crise. Ou melhor: são as crises, no plural, que hoje rondam as instituições de produção de conhecimento científico, colocando alegadamente nossa autoridade “em crise”. Sua adjudicação varia: crise política (Oliveira et al., 2022); de credibilidade (Oliveira et al., 2020); da expertise (Roque 2021; Eyal, 2019); dos sistemas peritos; epistemológica (Cesarino, 2021); crise, enfim, de confiança na ciência (Albuquerque; Quinan, 2019).
Marco temporal nesses diagnósticos foi a pandemia de 2020. De modo interessante, parte menor das análises não evocou o signo da “crise” enquadrando os dilemas pandêmicos “entre o negacionismo e a razão neoliberal” (Caponi, 2020). Para essa autora, discursos negacionistas se articularam a uma lógica neoliberal na qual o bolsonararismo impôs a disjuntiva “biopolítica entre proteger a vida ou expor à morte” (ibidem, p.219). Analogamente, tal dicotomia neoliberal foi detectada bem ao início da pandemia: contra medidas de distanciamento a “justificativa mais recorrente é [foi] salvar ‘o mercado’, ‘o andar da economia’, ‘a produção’ que ‘não pode parar’” (Szwako, 2020, p.71).
Porém, o diagnóstico de uma crise de confiança não esperou a pandemia: “A ciência” - vaticinou a Revista Pesquisa Fapesp - “vive uma crise de confiança” (Andrade, 2019, s.p.). Por ocasião do lançamento de estudos internacionais e nacionais (ver CGEE, 2019), a revista explorava “descrédito na ciência [que] tem relação com a reputação de outras instituições, como o governo e a Justiça” (ibidem). Um de seus entrevistados, Yurij Castelfranchi prefere falar em uma crise mais ampla: “As pessoas desconfiam da ciência assim como desconfiam de outras estruturas de poder, como o governo, o sistema judiciário e a imprensa” (ibidem). Na sua interpretação, seria inadequado tratarmos de um movimento negacionista in totum, como algo unívoco: “não existe um movimento anticientífico, mas [existem] bolhas que rejeitam certas evidências e consensos, e que aceitam outros” (ibidem).
Descrédito, desconfiança, anticiência são alguns dos nomes dados às crises que rondam ciências e cientistas. Sem oferecer respostas acabadas a esses dilemas, este artigo explora tais diagnósticos para levantar hipóteses que possam servir a pesquisas ulteriores sobre os negacionismos, aqui entendidos como armas discursivas e formas sociopolíticas de ataque a consensos científicos.
Primeiramente, veremos como se dá a temporalidade nos diagnósticos brasileiros, lidos em face de resultados sobre percepção pública da Ciência e Tecnologia (C&T) no país. Veremos como eles ligam sua noção de crise a fenômenos mais amplos como neoliberalismos ou à pós-verdade. Na segunda parte, veremos os excessos contidos numa ideia de “crise epistemológica”. E, na conclusão, retomamos as hipóteses para inspirar a noção de uma crise política. Ao modo de um manifesto, desse cotejo pretendemos extrair uma visão reflexiva das relações entre ciências, cientistas e negacionismos, que possibilite entender os negacionismos em suas nuances, ambivalências e continuidades com relação às ciências.
Experts e peritos em crise
As conexões entre confiança e desconfiança nas ciências foram objeto de reflexão de duas autoras brasileiras com maior saliência no debate sobre nossas crises. Em chave antropológica, “Pós-verdade e a crise do sistema de peritos” de Leticia Cesarino (2021) trouxe à baila uma explicação chamada cibernética, trazendo uma leitura da “abertura caótica dos processos de produção de verdade” (ibidem, p.93). Por sua vez, Tatiana Roque (2020; 2021) também ofereceu reflexões sobre “o negacionismo no poder” e “a queda dos experts”, respectivamente. O intervalo de convergência entre ambos, seus pressupostos e fontes, bem como as raízes espaço-temporais da “crise” ou “queda” por eles apontadas são as questões que nos interessam nesta primeira parte.
Menos do que atentar para uma definição estrita de negacionismo em face das ciências, Roque está preocupada com o aquecimento global. “Talvez”, nos diz, “o efeito mais deletério da crise de confiança seja o de abrir espaço para o negacionismo climático” (Roque 2020, s.p.). Ao falar do governo Bolsonaro, traz uma posição nuançada sobre nossa “crise”: se diz que “a confiança na ciên- cia está [ou vem] diminuindo”, afirma, por outro lado, que é “exagero dizer que movimentos anticientíficos estejam ganhando o debate” e que existe “uma desconfiança legítima [em face das ciências e cientistas] - que atinge boa parte da população” (ibidem). Alterna assim entre uma crise de fundo e uma ênfase nas formas legítimas de desconfiança, questionando-se: “Não existe - ainda? - uma adesão maciça ao anticientificismo” (ibidem).
Evocando a pesquisa de percepção pública da ciência e tecnologia pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE, 2019), Roque (2020) afirma que “a ciência ainda tem crédito junto à população, mas a desconfiança está aumentando”. Dentre outros resultados, destaca que a queda entre aqueles que veem “só benefícios” nos resultados das ciências levanta um alerta: “a desconfiança não chega a ser majoritária, mas o ceticismo se insinua” (ibidem).
Esse conjunto de resultados pode, contudo, não estar falando de ceticismo. Valendo-se de outras técnicas, Y. Castelfranchi (2018, p.238) sugeriu uma leitura cultural da mudança nos padrões brasileiros de percepção da ciência e tecnologia: “estar interessado, mas não informado, leva em geral a visões positivas, mas também mais ingênuas [naïve, no original] sobre C&T”. Assim, a apreciação positiva não é sinônimo de endosso da prática científica. Esse raciocínio nos permite expandir a compreensão das formas de lidar com instituições e autoridades científicas. Na chave da chamada autoridade cultural, ele perscruta múltiplas fontes de descrédito. Dentre outros fatores, desigualdades de renda, de acesso e de educação formam um mosaico que não o leva a supostos déficits. Sua análise abre espaço para a noção de que “escolaridade inferior não implica ‘medo’ de C&T [...] [e] ensino superior não se correlaciona com imagens ‘mais positivas’” (ibidem, p.241),2 abrindo espaço para não-contradições repletas de consequências:
[...] no Brasil, a crença no horóscopo não é correlacionada negativamente [not anti-correlated] com a crença na ciência, bem como práticas religiosas não são correlacionadas negativamente com a confiança na ciência.
[...]
Pessoas sem interesse e conhecimento sobre C&T não são particularmente inclinadas a posições “anticientíficas”. Eles não necessariamente temem a ciência. Ao contrário, a maioria deles é mais otimista que os demais grupos. (ibidem, p.245)
A riqueza desses insights nos afasta de qualquer ideia acachapante de crise da confiança. Tanto a nuance entre desconfiança e ceticismo como a refutação de um declínio tout court da autoridade científica3 nos servem para delimitar uma proposição mais reflexiva,4 pois os dados recentes sobre confiança e desconfiança no país não estão necessariamente falando de negacionismo, mas, sim, sobre valores múltiplos e modos reflexivos de se lidar com autoridades científicas.
Voltando a Roque, seu argumento se situa num terreno intermediário; é uma “crise de confiança que atinge, ao mesmo tempo, a ciência e a política”. É nessa chave de aproximação entre autoridades políticas e científicas que se dá sua compreensão de que “[vivemos] hoje um clima de ceticismo generalizado, uma descrença nas instituições que favorece a disseminação de negacionismos” (Roque, 2020, s.p.). Para ela, tal ceticismo se deve à “distância” entre aquilo que a ciência promete e cumpre. Analogamente à política, os resultados científicos teriam trazido desencanto. “E esse desencanto produz um terreno fértil para movimentos anticiência e teorias da conspiração” (ibidem). E aí aparece a ideia de um “tecido social” cujo “desgaste” reforçaria posturas ditas céticas. “A fragilização do tecido social e das instituições abre espaço para um ceticismo generalizado, que se traduz em rejeição ao ‘sistema’ como um todo. É nesse terreno fértil que atitudes negacionistas podem proliferar” (ibidem).
Seu diagnóstico da expertise se dá em chave convergente, pois experts são, para ela, “mediadores entre a ciência e a política, entre o conhecimento científico e a vida pública”; e segue:
[Experts] muitas vezes [são] cientistas ou pesquisadores que trocaram os laboratórios e as universidades pela ação na linha de frente das instituições, com o objetivo de, valendo-se de seu conhecimento especializado, aconselhar políticos, criar regulações, ajudar na elaboração de políticas públicas ou fazer recomendações aos tomadores de decisão. Seu papel é produzir e comunicar informações baseadas em evidências científicas [...].
A meio caminho entre a ciência e a política, os experts, à diferença dos cientistas, precisam intervir a quente no debate público, ao ritmo dos fatos (não dispondo, portanto, de um tempo longo para pesquisas). (ibidem)
É, então, no laço político-científico que estão suas indagações e alternativas. “Ações coletivas podem ser mais eficazes do que certezas e verdades contra o negacionismo. Por isso, estratégias científicas e políticas precisam andar de mãos dadas” (ibidem). Podemos ver aí a temporalidade atribuída à crise das ciências. “O casamento entre ciência e política foi feliz enquanto os avanços científicos estiveram identificados de forma inequívoca com melhorias [...]. Desde o fim dos anos 1970, no entanto, tem crescido a percepção dos riscos decorrentes da tecnologia” (Roque, 2021, s.p.); e, mais adiante, diz: essa crise “não é de agora” (ibidem). Nota-se, porém, uma mudança. O diagnóstico que alternava entre crise, ceticismo e desconfiança legítima passa, no segundo texto, a uma expressão mais enfática: “O abalo na credibilidade dos experts, que é um fenômeno mundial, coincidiu com o avanço da extrema direita” (ibidem).
Por um lado, essa mudança se liga à distância entre os textos. Enquanto o primeiro texto data de fevereiro de 2020, o segundo artigo responde diretamente aos dramas então vividos e sofridos. Talvez pelo caráter dramático do contexto sanitário, a postura de Roque passou à ideia de “queda” dos experts. Por outro, a principal influência intelectual do segundo texto é The crisis of expertise, de Gil Eyal (2019). Além do título e das menções expressas a Eyal, Roque (2021, s.p.) o segue de perto ao afirmar que “não é a ciência em geral que está na berlinda da opinião pública. As ofensivas se voltam contra a posição dos especialistas em relação a saberes com efeitos diretos e atuais na vida coletiva”. Essa ênfase específica foi alcunhada por Eyal (2019, p.144) como questões “transcientíficas” que habitam na “interface entre ciência e o Estado”. Com efeito, essa ideia ressoa a noção similar de “ciências regulatórias”, pela qual S. Jasanoff (1990) enfatizou aquelas políticas cujos problemas e soluções demandam conhecimento científico.
Todas essas noções convergem para o mesmo ponto, a meu ver, salutar porquanto capaz de nuançar o escopo dos ataques negacionistas: não é qualquer instituição ou autoridade científica que está sob ataque. A matemática pura não é interrogada em redes ou palanques. Já aqueles debates acadêmicos que estruturam políticas de saúde ou de gênero, para citar só duas, têm sido disputados desde muito antes do contexto pandêmico. Assim podemos sugerir nossa hipótese: os investimentos negacionistas estão orientados para políticas públicas cujas gêneses e soluções estão informadas por debates científicos. Voltaremos a ela na última parte.
Os anos 1970 ocupam lugar de destaque nos estudos sociais da ciência5 como signo da emergência da crise contemporânea de confiança. No entanto, essa datação aparece com roupagem distinta em L. Cesarino (2021). Seu raciocínio se dá em âmbito estrutural. “A perspectiva cibernética” orienta a análise “para vermos primeiro a estrutura”; nessa chave, a pós-verdade é lida como “um padrão estrutural comum de aumento da entropia”; e tal fenômeno é iluminado face às “ressonâncias estruturais com os populismos contemporâneos”, quais sejam, a “arquitetura das mídias digitais e o neoliberalismo atualmente existente” (Cesarino, 2021, p.75).
A autora extrai as consequências políticas de uma compreensão específica do que é a pós-verdade com fins a explicar a “crise dos sistemas peritos” à luz do papel desempenhado pela proliferação de infraestruturas digitais (redes, plataformas, aplicativos etc.) e de dinâmicas de neoliberalização. Nosso interesse se dirige a essas últimas. Antes de irmos à sua circunscrição temporal, vamos reconstruir grosso modo sua compreensão da conexão entre pós-verdade e seu diagnóstico de “crise” que recai sobre o “sistema dos peritos”.
Aproximando Latour e Kuhn, a autora afirma que a força da ciência advém de “sua capacidade de reduzir [...] a tendência à desordem” (ibidem, p.76). Para ela, não importa tanto que redes sociotécnicas fabriquem regimes de verdade nos laboratórios e ao seu redor. Importa, antes, que esses regimes operam através de mediadores, cuja eficácia depende de conseguirem conectar uma ideia a coisas, i.e., uma proposição a respeito de um fato científico a um ente no mundo “natural”. “[O] que a objetividade na ciência descreve é uma relação estável e eficaz entre enunciados e inscritores - ou mediações - de diversas ordens” (ibidem, p.77). E é essa mediação, argumenta, que vai ser posta em xeque pelo regime emergente da pós-verdade.
Assim, pós-verdade é “uma condição epistêmica na qual qualquer enunciado pode ser potencialmente modificado por qualquer um” (ibidem). Ligada a lógicas infraestruturais, ela é “uma crise de confiança” advinda “de uma mudança profunda nos tipos de mediação que organizam [...] a produção de conhecimento legítimo nas sociedades contemporâneas” (ibidem). Vai, contudo, além; trata-se de todo um contexto “de desorganização epistêmica profunda, no qual a comunidade científica e o sistema de peritos de modo mais amplo deixam de gozar da confiança social e da credibilidade que antes detinham” (ibidem, p.77-8, grifos nossos). Em boa medida, a conexão entre pós-verdade e sistemas-perito em crise se assenta nesse último “antes”. No contexto do regime emergente, se desloca a posição que antes tiveram as fontes intermediadoras de confiança. Seu papel foi “desorganizado”, pois é pouco custoso a “qualquer um” disputar ou modificar enunciados. No entanto, fica a questão: antes do quê?
O enfraquecimento de intermediários autorizados e “monopólios” de mediação que, até então, estruturavam a produção e a circulação de informação na esfera pública é constitutivo do neoliberalismo: à desestruturação do Estado social tem correspondido a fragilização de estruturas epistêmicas como o sistema de peritos e a mídia tradicional. (ibidem, p.90)
Sem data de nascimento exata, as dinâmicas de neoliberalização vêm articuladas ao advento da internet. Entre digitalização e neoliberalismo, é possível ver a “crise de confiança”. Isso porque a digitalização alavanca “atitudes epistemológicas” emergentes desprovidas de circuitos de estabilização “antes” operantes. Assim, o capitalismo digital tende a aprofundar o colapso dos intermediadores tão caros aos sistemas de peritos.
Dentre os principais elementos da constelação da pós-verdade, se destaca a noção de “sujeito influenciável”, i.e., a ideia de que os sujeitos “apresentam pouca resistência cognitiva às mediações - algorítmicas, mercadológicas, discursivas” (ibidem, p.88). Em chave sistêmica, a análise enfatiza que, ante à “caixa-preta” da parafernália algorítmica, se desenrola uma “alienação técnica”. Com “sujeitos vulneráveis em busca do reconhecimento e de socialidade”, teríamos um terreno fértil para fenômenos “como a ascensão de pseudociências, como o terraplanismo, e de grupos radicais e conspiratórios” (ibidem) - e de volta à “crise”.
Aqui nos seria útil cotejar alguns resultados sobre confiança no Brasil. Assim, olhando para a pesquisa da Fiocruz (2022, p.11), veremos que pouco mais de 55% dos respondentes afirmam que sua confiança na ciência aumentou no período pandêmico. Congruentemente, outro indicativo está na diferença de posição entre as fontes confiáveis de informação: cientistas passaram do 4º ao 2º lugar nas fontes de maior confiança entre 2019 e 2022 (CGEE, 2019, p.13; Fiocruz, 2022, p.15, respectivamente).
Esses dados não são suficientes para dizer se há, ou não, crise de confiança na ciência no país - e nem é esse o objetivo deste texto. Como vimos, qualquer pergunta in toto sobre confiança é mal concebida. A forma pela qual entendemos a apreensão dos públicos não pode ser feita por dicotomias. Seja como for, esses dados nos afastam de concepções estruturais, jogando a favor de concepções mais afins a reflexividade e apostas feitas nesse sistema-perito.6 Dados como esses não parecem nos falar de um público influenciável.
Os dados tampouco ecoam a noção de um colapso de mediadores. “O conhecimento de instituições dedicadas à pesquisa científica cresceu [durante a pandemia]. Mais de 25% dos entrevistados respondem positivamente à pergunta - em 2019, esse número era de apenas 9%” (Fiocruz, 2022, p.19). Não podemos dizer aqui quais as razões pelas quais cresceu a capacidade dos respondentes de nomear uma instituição. Os indivíduos não aparecem, contudo, desconectados de instituições de produção de conhecimento nas quais parecem, quiçá, apostar.
Outro resultado de relevância está na constatação da “falta de evidências indicando um grupo de ‘negacionistas da ciência’” (Fiocruz, 2022, p.27). Esse argumento remete a Roque (2020, s.p.), que diz: “seria exagero dizer que movimentos anticientíficos estejam ganhando o debate”. E também reafirma Castelfranchi ao dizer que no Brasil “não existe um movimento anticientífico”. Agora, nos afastando de lentes macro que fundem efeitos e sujeitos em processos mais amplos, nossa segunda hipótese sugere que seria tanto teórica como empiricamente inadequado falar de algo como um “movimento negacionista” na cena brasileira. À diferença de outros contextos, as séries de ataques a instituições e personagens científicas, no Brasil, não adquirem lógica movimentalista, se por “movimento social” (progressista ou conservador) entendermos redes de atores em interação com autoridades políticas e forjadoras de ações e identidades (Tarrow, 2009).
Aqui é fundamental a distinção analítica entre um movimento social e a noção de grupo, pois, como veremos adiante, não contestamos a existência de grupos negacionistas organizados ao redor das ciências para fins políticos, morais ou outros. Porém, enquanto qualquer “movimento social” apresenta uma base militante e é simultaneamente capaz organizar ações coletivas com base numa identidade compartilhada (McAdam; Tarrow; Tilly, 2001), os grupos organizados (como os grupos de lobby ou de pressão) se orientam por seus interesses. A implicação dessa distinção reside em que não é toda ação coletiva que pode ser chamada de movimento social, sob pena de estiolar sua delimitação analítica. Assim, à diferença de ativistas, por exemplo, feministas ou conservadores, cuja autodefinição passa pela adesão a uma identidade coletiva, é altamente improvável pensar em algo como uma “identidade negacionista” correlata a um “movimento negacionista”.
Essa hipótese nos serve então de alternativa a explicações estruturais. Se o par digitalização e neoliberalização transcorre em escalas globais, seus efeitos não são estruturalmente previstos. Entre as dinâmicas cibernéticas e os sujeitos operam redes e mediações e formas pouco afeitas a padrões sistêmicos. Parece, assim, pouco acurado tomar movimentos sociais delineados alhures como parti pris do debate.7
Os fatores diagnosticados por Roque e Cesarino inspiram nossas hipóteses. Essas tentam contornar um campo repleto de dilemas: não é toda e qualquer ciência que está sob ataque, nem o sujeito na base desses ataques se parece com movimentos sociais. Voltaremos a essas ideias ao final do texto. Por ora, vale dizer que são ambas reflexões valiosas porque heuristicamente férteis. Vejamos, nas partes seguintes, como outros diagnósticos falam de crise epistemológica e também política.
Crise epistemológica?
Síntese das reservas dirigidas à noção de “crise” pode ser vista no seguinte comentário: “Movimentos negacionistas, geralmente influenciados por literalismo bíblico, existem há muito tempo”, dizem Albuquerque e Quinan (2019, p.84), “mas recentemente ganharam novo fôlego, aproveitando as oportunidades tecnológicas propiciadas pelas mídias sociais, tais como de fóruns especializados”. Tal diagnóstico reúne em pouco espaço o leque de fatores criticado na primeira parte: certo determinismo estrutural-tecnológico e a correlata redução dos efeitos frente a estruturas; pressuposição de influenciabilidade; bem como uma compreensão movimentalista dos negacionismos.
Essa leitura, porém, destaca a dimensão epistêmica; trata de uma “crise epistemológica” “que resulta da relação problemática dos indivíduos com as instituições modernas, que dá lugar ao crescimento da pseudociência e do extremismo religioso” (Albuquerque; Quinan, 2019, p.102). “Crise epistemológica e teorias da conspiração” é quase um alerta de pânico:
A crescente visibilidade adquirida por movimentos negacionistas como o terraplanismo - e outros, como os movimentos antivacina e de contestação ao aquecimento global - dão conta de um desafio inédito que se apresenta à sociedade contemporânea, de modo geral e, de modo especial, ao papel que cabe à universidade desempenhar nela. Ela se articula com uma crise da democracia, de escala global e, de modo mais abrangente, a uma crise epistemológica, que se traduz na perda de confiança em instituições fundamentais da sociedade, dentre as quais a própria universidade. [...] Tornou-se corrente a percepção de que experimentamos atualmente uma crise epistemológica de grandes dimensões. (ibidem, p.84)
Esse diagnóstico é interessante dado sua veia enfática: mais que política, há uma “crise da verdade”. Atentos ao canal “Professor terra plana” no YouTube, seu argumento afirma que não se trata só de “fake news” ou “pós-verdade”. Esses autores querem ir mais a fundo pois esses últimos conceitos seriam restritos. Contra isso, propõem que, se
[...] esses agentes [fabricadores de fake news] podem obter alguma credibilidade, isso acontece porque a autoridade das instituições que tradicionalmente ocupavam o centro do tabuleiro tem sido crescentemente desafiada [...]. É somente na medida em que isso acontece que podemos entender o contexto no qual as teorias da conspiração saíram da dinâmica particularista que as caracterizava e se tornou um elemento capaz de contestar, com um sucesso crescente, as interpretações que definiam o senso comum até muito pouco tempo. (ibidem, p.86)
Esse diagnóstico fala de uma crise das ciências, a começar pelo terraplanismo enquadrado como “discurso anticiência”. O canal terraplanista é lido como exemplar da “cultura da conspiração” - termo deles - dentro da “recente expansão dos movimentos negacionistas no contexto de uma crise epistemológica, que abala consensos sociais e, portanto, cria um terreno fértil para eles [movimentos]” (ibidem, p.85). Nesse argumento, conspiracionismos seriam o outro das “instituições modernas”; são “tentativas de explicação alternativas àquelas veiculadas oficialmente pela imprensa, ciência ou governos” (ibidem, p.87). Daí, então, seu qualificativo como discurso anti-ciência. Assim concebidas, as teorias conspiracionistas são equivalidas a “pseudociências”. Afinada ao diagnóstico anterior, esse diagnóstico também supõe consequências necessárias entre digitalização e influência ideológica, entre YouTube e a difusão do terraplanismo.
O limite desse diagnóstico pode ser visto nos dados recentes sobre confiança no país. Embora inexistam questões específicas sobre terraplanismo nos questionários, existem questões sobre aquecimento global. De acordo com os resultados, “[a] população brasileira majoritariamente concorda que as mudanças climáticas estão acontecendo (91%)” (Fiocruz, 2022, p.21), dentre os quais, mais de 85% “dizem que a causa é a ação humana” (ibidem, p.22). Como se vê, sujeitos não parecem resultado das versões conspiracionistas das redes. Em aberto fica a questão sobre as mediações e valores - quer morais ou ideológicos ou ambos - operantes entre sujeitos e redes sobre esses e outros temas.
Por outro lado, ao rotular os discursos conspiracionistas como algo “anti”-ciência, esse diagnóstico deixa na penumbra aspectos compartilhados entre esses discursos e práticas científicas. Em outra reflexão, sugerimos que a imagem de ruptura entre ciência e negacionismo era obstáculo à sua compreensão, de maneira que pensá-los como um gradiente seria analiticamente mais produtivo (Szwako; Holanda, 2023). Além de Nowotny (1979), esse continnum vale-se também da pesquisa sobre a negação do aquecimento global e, em particular, sobre o papel de cientistas consagrados no rol estratégico de várias empresas (Oreskes; Cownay, 2011). Longe de uma versão polar (Figura 1), as táticas negacionistas mantêm relação ambígua com roteiros e recursos tecnocientíficos, dos quais se apropriam para perseguir seus próprios fins e interesses.
No entanto, apesar de levar a tal polarização, esse diagnóstico traz uma questão crucial: se se trata de uma crise “epistemológica”, como fica o estatuto do conhecimento científico nesse emaranhado em torno às ciências? Questão fundamental para quem, como nós, vem sugerindo que discursos científicos e negacionistas podem ser entendidos dentro de um gradiente compartilhado. Como, então, pensar as fronteiras entre um e outro? Na fala de Collins e Evans (2010, p.189): “deve ser possível demarcar a fronteira - a questão é como”. Não é outro o desafio hoje posto pelos negacionismos: como fazer uma análise simétrica deles e simultaneamente ser capaz de diferenciá-los das ciências?
Para responder, o primeiro passo é recusar a exotização das pseudociências, i.e., na recusa à sua demonização (Gordin, 2012, p.202),8 pois elas não são reduzíveis a uma de alteridade radical “anti”-científica. O passo seguinte consiste em deslocar o clássico problema de demarcação: saindo de uma postura normativa sobre o que “é” ou “não é” científico, para seguir rumo a uma análise empírica dos atores e das disputas mobilizadas na construção de falsas controvérsias científicas, entendidas como “dissensos fabricados propositalmente que procuram influenciar a opinião pública e os formuladores de políticas, a fim de evitar que políticas regulatórias sejam postas em prática” (Rajão et al., 2022, p.319). Essa chave de leitura converge, por um lado, com nossa primeira hipótese de que não é toda “a ciência” que está sob ataque; por outro, entende que boa parte dos esforços negacionistas está dirigida à criação e disseminação de supostas dúvidas sem lastro nos acúmulos e consensos de pesquisa.
Com base nessa perspectiva, então, nossa terceira hipótese propõe que grupos e discursos negacionistas são melhor entendidos em função de seu investimento sistemático na fabricação de falsas controvérsias científicas (Figura 2).
A noção de “falsa controvérsia científica” nos parece um dispositivo analítico adequado na medida em que conjuga duas tendências opostas, embora não necessariamente contraditórias. Ao dizer que se trata de algo “controverso”, ela mantém em aberto o escrutínio de quem e do que está em jogo no continuum ciência/não ciência; ao dizer, simultaneamente, que se trata de algo “falso”, ela evoca os dilemas característicos da demarcação sobre limites entre o científico e o não científico. Para evitar que essa última delimitação seja apenas normativa, as falsas controvérsias devem, a nosso ver, ser compreendidas nessa simultaneidade: ao mesmo tempo em que demandam a averiguação de como fronteiras são empurradas e disputadas, elas também requisitam uma postura analiticamente capaz de diferenciar o que é científico do que não é. Não se trata, portanto, de uma análise puramente empírica, mas de uma análise não-apriorística da demarcação, mantendo-se capaz de ver nuances entre contestações mais legítimas, e outras menos legítimas, das fronteiras do que é ou não científico, sem decidi-las ex ante. E essa dupla tarefa nós buscaremos satisfazer com o apoio da noção de boundary-work (Gieryn, 1999) e uma apropriação crítica de Collins e Evans (2010).
É nessa região cinzenta (Figura 2) que se concentram esforços negacionistas, na apropriação deliberada de retóricas e credenciais científicas, com vistas a nublar e persuadir terceiros, criando dissensos e incertezas. Na análise das falsas controvérsias, Rajão et al. (2022, p.322-5) exploram três táticas negacionistas: uso indevido de credenciais; desprezo pela literatura científica; bem como fabricação de incertezas. Esse arsenal ganha sua tradução na proposta de uma demarcação ciência/não ciência elaborada por Collins e Evans (2010), cuja distinção fundamental passa pelo grau de engajamento em um paradigma estabelecido. Para eles, exemplos como o chamado design inteligente não são científicos na medida em que não compartilham com partes mínimas de paradigma científico. “[Os] revolucionários de um paradigma visam persuadir os mesmos cientistas a pensar e agir de uma nova forma dentro das instituições já existentes” (ibidem, p.197). Assim, o que importa para essa dupla é que a adjudicação científica de um empreendimento ou grupo venha do seu compartilhamento com partes de um paradigma e que esse último seja questionado internamente ou, mesmo, derrubado, mas a partir de dentro.
Esse critério de Collins e Evans merece, contudo, um retoque por ser normativo ao rotular os outsiders como “pseudociência”. O grau de engajamento em determinado paradigma pode, a meu ver, ser critério para entender a fabricação de falsas controvérsias, mas isso não pode ser uma demarcação normativa feita a priori; esse grau demanda, como dissemos, sua investigação empírica.
Acrescido a isso, tal fabricação pode ser mais bem entendida também em razão do trabalho de demarcação de fronteiras dos grupos negacionistas. Tendo sido inicialmente utilizada para interpretar os esforços de cientistas para definir as particularidades de sua atividade frente ao que seria “não-científico” ou “pseudocientífico” (Gieryn, 1983), a noção de boundary-work é interessante pois pressupõe ações estratégicas e a dimensão profundamente simbólico-cultural dessas demarcações (Gieryn, 1999). Mais recentemente, em particular no contexto brasileiro, um conjunto de autores mobilizou essa noção para inquerir os meios pelos quais a ciência mainstream brasileira foi associada a noções de corrupção e com soluções economicamente inviáveis. Desse modo, não se tratava tanto de negar as ciências institucionalizadas; a questão era, antes, as fronteiras pelas quais grupos bolsonaristas se distinguiam por apelos a uma ciência “patriota” (Fonseca et al., 2022). Assim, a inspeção do trabalho de demarcação de fronteiras pode oferecer um critério adequado e um caminho para entender como diferentes atores, redes e discursos, não apenas mimetizam as ciências apropriando-se de partes delas, mas operam uma tentativa de simetrização, ao reivindicar e performatizar insígnias de “cientificidade”.
Com efeito, a proposta de conjugação desses dois critérios para compreensão da fabricação deliberada de dissensos responde àquele dilema endereçado pela ideia de uma suposta crise epistemológica ao estatuto atual do conhecimento científico. Ao mesmo tempo em que nos afasta da demonização dirigida a discursos relegados às chamadas “pseudociências”, essa terceira hipótese pretende encarnar uma trégua alternativa à divisão entre duas posturas: simétrica e assimétrica, entre uma postura por assim dizer mais relativista e outra mais normativa; ou, ainda, para usar os termos de P. Mirowski (2020), entre uma postura mais “niveladora” e outra mais “aprofundadora” das hierarquias entre saberes e sujeitos aqui em jogo. Assim e em suma, na medida em que um empreendimento de contestação e desafio às ciências não compartilha partes mínimas de um consenso ou paradigma desafiado, a exemplo do terraplanismo ou do design inteligente; e, ainda, na medida em que investe na construção de fronteiras para perseguir interesses paracientíficos, ele terá boas chances de ser um discurso ou grupo negacionista fabricador de falsas controvérsias.
Coda: crise política
Do diálogo com os diagnósticos aqui esposados derivamos parâmetros mais reflexivos e menos prescritivos para análises ulteriores dos discursos e grupos negacionistas. Situados no laço político-científico, os negacionismos não dizem respeito a quaisquer desafios lançados a autoridades científicas - boa parte deles, diga-se de passagem, razoável e legítima. Vimos, na primeira hipótese, que negacionismos são mais bem compreendidos se circunscritos àqueles domínios de políticas públicas nos quais os debates e agentes científicos têm relativa centralidade, seja como formuladores de problemas, seja como de soluções. Vimos, em seguida, que, sob pena de importarmos categorias extemporâneas à nossa configuração sociopolítica, empreendedores negacionistas são mal designados como “movimentos” em si mesmos. Certamente alguns movimentos sociais, especialmente aqueles ideologicamente conservadores, se valem de táticas e performances negacionistas. Parece-nos, contudo, que isso não nos autoriza a falar de “movimentos negacionistas”. Mais que analiticamente equivocado, esse erro de apreciação carrega efeitos que podem superestimar seu alcance político - e, como tentamos demonstrar, essa é tendência notável nas análises que sustentam uma ideia de crise de confiança na ciência no Brasil. Na contramão dessa veia enfática, dados recentes podem inspirar uma leitura menos determinista e mais criativa dos modos pelos quais partes do público brasileiro se relacionam com as autoridades científicas. Longe de serem resumíveis a categorias macro ou a fórmulas dicotômicas (confia versus não confia), esses modos de percepção estão reflexivamente atravessados por valores culturais, morais e políticos-ideológicos que moldam o imaginário e a identidade dos grupos e indivíduos a respeito do que são e do que devem ser, ambas, instituições e personagens científicas. Se essa reorientação for correta, podem emergir novas perguntas norteadoras na agenda: há conexão entre valoração de gênero (igualitária ou hierárquica) e confiança na ciência? Há conexão entre defesa ideológica do mercado (mais regulado ou mais desregulado) e confiança? Trata-se, enfim, de conexões e valores de diversas ordens e não apenas de mudanças sociotécnicas mais amplas.
Na segunda parte do texto, vimos que a acusação dirigida às pseudociências pouco ajuda a entender os negacionismos. Afastando-nos dessa demonização, sugerimos que boa parte do investimento negacionista está concentrado nas franjas das relações com as ciências estabelecidas. Não se trata, pois, de um mero repúdio “pseudo” ou “anticientífico”, mas de uma região de sobreposição conflagrada no gradiente em que negacionismos digladiam para estender suas fronteiras em face das ciências. Nessa terceira hipótese, sugerimos atenuar o problema normativo do que é ou não é “científico”, por meio do recurso à averiguação empírica de se, como e em que medida diferentes atores se engajam em paradigmas para disputá-los e derrubá-los, e, simultaneamente, sobre o seu trabalho de demarcação de fronteiras. Essa hipótese foi uma tentativa de resposta não apenas ao diagnóstico da alegada crise epistemológica, mas também uma relativa trégua entre posturas interpretativas simétricas e assimétricas no debate recente (ver Mirowski, 2020).
Por fim, vale ainda dialogar com o diagnóstico da chamada “crise política”. Esse último pode ser tanto mais interessante, se pensarmos na rentabilidade heurística daquela primeira hipótese enquadrada nos liames da interseção entre políticas e ciências, no laço político-científico, como dissemos. Grosso modo, nesse último diagnóstico a “descrença” e as tensões disparadas pelos ataques às instituições de pesquisa estão “alinhadas” a uma “crise política e institucional”; tal como dizem:
[...] pesquisadores têm tentado entender a circulação de desinformação e traçado estratégias para enfrentar ondas de desinformação e negação do conhecimento científico.
No caso do Brasil, a pandemia de Covid-19 não trouxe apenas um agravamento sobre a questão sanitária, mas é atravessada também por uma enorme crise política e institucional no país. Essa crise está alinhada a uma agenda de descrença sobre as comunidades epistêmicas como uma das marcas do governo atual [do ex-Presidente Bolsonaro]. (Oliveira et al., 2022, p.18)
Para delinear essa “marca” negacionista, Oliveira e seus coautores remetem à politização da chamada “cloroquina”. Para eles, essa falsa controvérsia dá “exemplo do processo de descredibilização das instituições epistêmicas como política governamental” (ibidem, p.19). O flanco aberto pela hipótese da “crise política” nos parece frutífero, pois ele abre caminhos variados para pensar as sobreposições e conexões cognitivo-políticas, sem chegar a uma sorte de reductio ad absurdum que funde a ciência na política. Ou por outra: esse diagnóstico é interessante na medida em que abre o leque de respostas à questão: como, afinal, se alinham conflito político e negacionismo?
Ao falar de “crise política”, esse grupo de autores alterna entre “instituições públicas” e “epistêmicas” para ilustrar seu argumento. Se valendo dessa pista, uma hipótese derradeira pode complexificar esse diagnóstico centrado no aspecto institucional da artilharia negacionista. Como já visto, não são quaisquer ciências hoje sob ataque, mas aquelas ao redor de políticas públicas. Analogamente, não foi qualquer universidade que foi acusada de “balbúrdia” por ministros bolsonaristas (Szwako; Souza, 2022), mas, sim, as universidades públicas. De maneira similar, não foram sistematicamente detratados os institutos privados de pesquisa, mas, antes, a Fiocruz e o Instituto Butantã... Ou seja, aí reside nossa última hipótese: é o caráter público (de provisão e acesso universais) de determinados bens cidadãos e achados científicos que é alvo dos discursos e grupos negacionistas.
O problema da relação entre política e negacionismo é, nessa hipótese, circunscrito e endereçado à natureza pública daquilo que está em jogo na chamada “crise política”. Por um lado, trata-se, mais uma vez, de conferir o peso da valoração e dos modos de apreciação nos fenômenos em tela. Nesse diapasão, por exemplo, a hesitação vacinal pode estar mais ou menos ligada a valores morais ideológicos e a um rechaço a ideais como gratuidade e acesso. Por outro lado, essa centralidade do que é público tem implicações para as disputas de sentido sobre o que são os direitos e aquilo que é de direito universal, ao mesmo tempo em que reposiciona as relações íntimas do negacionismo com o discurso neoliberal e sua defesa da desnecessidade do público - do acesso, do serviço, do convívio, do bem públicos. Isso porque os ataques negacionistas reforçam “princípios neoliberais de que o Estado [supostamente] não é mais eficiente na administração da esfera pública” (Oliveira et al., 2022, p.19).
Em conjunto ou em separado, as hipóteses aqui levantadas recolocam questões às agendas sobre negacionismos notando a sobreposição de camadas (simultaneamente institucionais e ideológicas, materiais e morais) operantes nas estratégias negacionistas e realidades negadas. Com todas suas limitações, esperamos que esta leitura possa nutrir outros diagnósticos menos alarmados e mais nuançados desse conjunto de fenômenos que tem preocupado parcelas importantes de nossa sociedade, nossas burocracias e nossas intervenções.
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Notas
-
1
Este texto não seria possível sem a paciência e as críticas de Joaquim Toledo Jr., Marko Monteiro, Maria Carlotto, Jorge Chaloub, Renan Springer, Paulo Cassimiro, Luiz Augusto Campos, Thiago Lopes e Daniela Lisboa - a quem agradeço, embora seja eu o único responsável por eventuais erros.
-
2
Cf. Oliveira et al. (2020); Roque (2020).
-
3
Com efeito, essa sugestão de Castelfranchi está sintonizada com os resultados de Drummond e Fischhoff (2017).
-
4
Reflexivo é o adjetivo extraído da reflexividade, noção pela qual A. Giddens enfatizou que, em cenários modernos (i.e., destradicionalizados), “as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter” (Giddens, 1991, p.38).
-
5
Ver, inter alia, Nowotny (1979); Jewett (2020).
-
6
Em plena pandemia, 97% do público brasileiro alternavam entre apostar “que os cientistas logo encontrarão uma forma de conter a Covid-19” e “que os cientistas irão encontrar uma solução, mas vai demorar” (Massarani, 2021, p.3273).
-
7
Exemplos desse tipo de reificação podem ser notados em outras; ver I. Oliveira et al. (2022); T. Oliveira et al. (2022); Gurgel (2023).
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8
O debate sobre pseudociências é oceânico. Sigo aqui Gordin, para quem, fundamentalmente, trata-se de uma categorização acusatória aos desafios e desafiadores situados nas franjas da ciência mainstream. Seguindo Notowny (1979, p.15), podemos afirmar que “[as] incompatibilidades entre ciências e pseudociências são mais parciais que totais. De muitos jeitos, as pseudociências aspiram se tornar cientificas” (grifo meu); Gordin (2021, p.92) também diz que os acusados de pseudocientistas nutrem, não raro, “um entusiasmo sincero mas mal colocado pela ciência”. Seguindo ambos, ao propor um continuum ciências/negacionismos e ao recusar a demonização das pseudociências, evito a construção de “bodes expiatórios”, termo dele.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
26 Jan 2024 -
Aceito
11 Jun 2024