RESUMO
A pandemia de Covid-19 deu urgência ao debate sobre o negacionismo científico. Para muitos, ao evidenciar as relações de poder inerentes às práticas científicas, o campo de estudos de ciência e tecnologia teria aberto o caminho para a contestação da ciência moderna que foi explorado por populistas de extrema-direita. Neste artigo, abordamos essa questão a partir dos debates sobre autoridade epistêmica e os usos da ciência durante a “CPI da Covid”. A análise dos enfrentamentos entre depoentes e senadores permite identificar parte do repertório político “bolsonarista” e revela que esse grupo frequentemente se apropria dos signos e códigos próprios da ciência para legitimar suas posições. Observando processos de acúmulo de credibilidade epistêmica e disputas em torno da demarcação das fronteiras da ciência, o artigo argumenta que a pós-verdade no Brasil não avança pela contestação dos limites entre ciência e política, mas pela reificação desta fronteira e por demandas de purificação da prática científica.
PALAVRAS-CHAVE:
Negacionismo; Pós-verdade; Covid-19; Autoridade epistêmica; Controvérsias científicas
ABSTRACT
The Covid-19 pandemic brought renewed urgency to the debate on scientific denialism. For many critics, when the field of Science and Technology Studies emphasized the power relations within scientific practices, thus paving the way for the contestation of modern science, it created a political narrative that has been exploited by far-right populists. In this article, we address this issue based on debates about epistemic authority and the uses of science during the Brazilian “Covid Parliamentary Commission”. Through the analysis of exchanges between deponents and senators, it becomes evident that Jair Bolsonaro’s political group often mobilized scientific symbols and codes to legitimize their positions. The article particularly examines the processes of establishing epistemic credibility and delineating the boundaries of science. Contrary to popular belief, our findings suggest that, in Brazil, the ascent of post-truth ideologies does not stem from blurring the lines between science and politics. Instead, far-right populists reinforce these boundaries while advocating for the sanctity of scientific practice.
KEYWORDS:
Science denial; Post-truth; Covid-19; Epistemic authority; Scientific controversies
Introdução
Nos últimos anos, divulgadores científicos e veículos tradicionais da imprensa têm culpado “populistas reacionários” por antagonizar especialistas e negar fatos objetivos com apelos à emoção e à crença pessoal (Lynch; Cassimiro, 2022; Oxford Dictionaries, 2016). A defesa do conhecimento especializado e das instituições científicas desencadeou ainda denúncias acerca do papel dos Estudos de Ciência e Tecnologia (ECT) na “crise da verdade”. Nessa perspectiva, ao revelar as relações de poder imbricadas nas práticas científicas e postular maior democratização epistêmica, os ECT teriam oferecido um fértil terreno intelectual para aqueles que prosperam com a ignorância e a incerteza (Collins et al., 2017; McIntyre, 2018; Kakutani, 2018). Ou seja, a responsabilidade pelo fenômeno da pós-verdade estaria também nas mãos daqueles que investigam criticamente a produção de fatos científicos.
Pesquisas recentes, contudo, têm mostrado que discursos “negacionistas” frequentemente acionam elementos próprios da ciência moderna para angariar credibilidade e influenciar políticas públicas (Lynch, 2020; Lee et al., 2021; Oliveira et al., 2021; Ruediger, 2021; Duarte; Benetti, 2022). Desse modo, argumentam que a pós-verdade não se nutre necessariamente da dissolução de fronteiras entre política e ciência, nem opera por meio da substituição da ciência no lugar de portadora de conhecimento objetivo sobre a natureza. A crítica à suposta contribuição dos ECT na disseminação de discursos anticientíficos seria, portanto, descabida.
Neste artigo, nos debruçamos sobre as controvérsias em torno da constituição de regimes de verdade a partir da análise dos debates sobre a ciência travados na comissão parlamentar de inquérito da pandemia (“CPI da Covid”). Com mais de 700 mil mortes, o Brasil foi considerado um “exemplo trágico de como a falta de políticas apropriadas e o negacionismo da pandemia impactaram na saúde pública” (Malta et al., 2021, p.1, tradução própria), sendo o então presidente Jair Bolsonaro acusado de “pavimentar o caminho para a perigosa equivalência entre opinião e ciência” (Ricard; Medeiros, 2020, tradução própria). Em 2021, foi instaurada uma CPI que deu voz a essas acusações e discutiu sobre as bases científicas das políticas adotadas.
A análise dos debates parlamentares indica que, ao invés de explorar os caminhos da democratização epistêmica, ou o questionamento das hierarquias entre saberes especializados e o senso comum, a política da dita pós-verdade no Brasil reivindicou autoridade científica para seus postulados. Indivíduos acusados de serem “negacionistas” sustentaram suas ações com referências a artigos publicados em revistas consagradas, apoiando-se no trabalho de cientistas amplamente citados por seus pares e mencionando pesquisas desenvolvidas em instituições de prestígio. Ao mesmo tempo, buscaram desconstruir o argumento de seus detratores indicando que esses “politizavam” o debate, se valiam de “falsos especialistas” e faziam uso seletivo de evidências.1
Metodologicamente, nossa pesquisa consistiu na análise de 62 depoimentos. Esses foram realizados entre 4 de maio e 22 de setembro de 2021 e incluíram ministros e ex-ministros, profissionais de diferentes agências de saúde, políticos ligados à base governista e de oposição, além de médicos e divulgadores científicos que se posicionaram a favor ou contra as medidas adotadas pelo governo. Como a CPI produziu centenas de horas de debates, fomos obrigados a selecionar alguns poucos discursos que julgamos mais representativos dos temas analisados. Essa seleção não pretende abarcar o caráter caleidoscópico do discurso político (Cesarino, 2022), mas sim jogar luz sobre um grupo de evidências que permanece negligenciado por grande parte da literatura sobre pós-verdade.2
O artigo está dividido em três seções, além da introdução e da conclusão. Na primeira seção, abordamos os limites daqueles que apontam que os ECT estão na origem da era da pós-verdade. Na segunda seção, analisamos as disputas epistêmicas na CPI, nas quais podemos observar diferentes concepções de enfrentamento à pandemia que, contudo, mobilizam estratégias discursivas semelhantes. Na terceira seção, discutimos como a disputa por autoridade epistêmica opera na CPI de modo a constituir as fronteiras da ciência sobre a pandemia. Por fim, não apenas negamos a culpabilização da sociologia da ciência, mas argumentamos que suas ferramentas analíticas são fundamentais para compreender a política da pós-verdade.
Sociologia da ciência e a crítica da pós-verdade. De quem é a culpa?
Nas últimas décadas, pesquisadores da área de ECT têm se dedicado a entender (1) o “trabalho de demarcação” que permite a especialistas delimitarem seu campo e falarem em nome da “razão” e das “evidências científicas” (Gieryn, 1983); (2) o processo de “coprodução” de ações políticas (poder) e do conhecimento sobre o mundo natural (expertise) (Jasanoff, 2004); e (3) a consolidação de redes sociotécnicas que unem “reações químicas e reações políticas”, de forma que “um mesmo fio conecta a mais esotérica das ciências e a mais baixa política” (Latour, 1994, p.7). O resultado é uma literatura equipada com métodos e conceitos que substituem narrativas genéricas acerca da separação moderna entre política e ciência por pesquisas empíricas sobre a rotina de práticas científicas e relações de poder.
A relativização da ideia de uma verdade universal e a valorização de diferentes perspectivas epistemológicas, contudo, têm sido apontadas como elementos centrais da era da pós-verdade (McIntyre, 2018; Kakutani, 2018). Para muitos, a crise atual tem origem ainda na dissolução das barreiras entre leigos e especialistas, o que substitui parâmetros supostamente pacificados sobre o papel privilegiado de cientistas em processos de tomada de decisão por um “vale tudo epistêmico” em que cabe a cada um escolher em quem acreditar (Collins et al., 2017).
O que os ECT têm feito ao analisar a construção de enunciados científicos, no entanto, é mostrar que nem todas as reivindicações de conhecimento são iguais. Como aponta Sismondo (2017, p.3), a sociologia da ciência nunca advogou pelo “barateamento do conhecimento científico”:
Descrições detalhadas da construção de conhecimento mostram que este requer infraestrutura, esforço, engenhosidade e formas de validação. Nosso argumento de que “poderia ser de outra forma”... raramente são colocados como “poderia facilmente ser de outra forma”. Ao invés disso, apontamos para outras possíveis infraestruturas, esforços, engenhosidades e formas de validação. Isso não se parece com pós-verdade. Uma conta de Twitter sozinha não constrói o que chamamos de conhecimento.
Ou seja, argumentos populares acerca da “morte da expertise” (Nichols, 2017) e do “declínio da razão” (Davies, 2019) ignoram que a construção do conhecimento ainda requer uma infraestrutura de produção e validação que não é facilmente replicada. Políticos de extrema-direita não produzem enunciados a partir do nada. Ao contrário dos estereótipos correntes, aqueles acusados de serem “negacionistas” entendem que tweets não carregam a mesma autoridade de teses de doutorado. Além da arquitetura informacional das redes sociais, há enorme emaranhado de think tanks, cientistas, empresas e intelectuais públicos que dão suporte epistêmico aos seus discursos e que tentam envelopar seus argumentos nos símbolos tradicionais da ciência moderna (Lynch, 2017; Duarte; Benetti, 2022). Assim, a imagem de uma torre de marfim atacada por bárbaros irracionais não nos parece acurada.
Na próxima seção, a análise dos debates da CPI evidencia que a pós-verdade não se alicerça necessariamente no ceticismo em relação aos especialistas e ao saber científico, mas sim na disputa pelas formas de validação do conhecimento e pela distribuição desigual de expertise. Assim, populistas reacionários não questionam o lugar privilegiado da ciência, mas disputam a posição de quem fala pela ciência.
Como aponta Costa (2021, p.315), “o problema da atual crise da verdade não reside... no movimento de duvidar de verdades estabelecidas e lidar com a ciência em sua dimensão mundana... [mas esperar uma verdade] que pacificará nossas discordâncias” sobre formas de regulação da vida social. Mesmo quando falamos da interação da ciência com temas marcadamente biopolíticos, esperamos que aquela seja uma ferramenta de validação externa para escolhas que fazemos sobre formas de controle social e governo dos corpos. O que mostramos, portanto, é que os dois lados da CPI insistem na ciência como uma espécie de redenção da política.
Controvérsias sobre a pandemia no Brasil
Desde o início de 2020, autoridades públicas brasileiras divergiram sobre medidas de contenção do vírus. Enquanto diversos estados aprovaram decretos emergenciais para suspender atividades não essenciais, o governo federal defendeu ações menos restritivas. O ponto central da controvérsia se deu em torno da eficácia do distanciamento social e de suas consequências no médio prazo. Segundo Bolsonaro, ao seguir protocolos da Organização Mundial da Saúde (OMS), alguns gestores públicos adotaram políticas que restringiam liberdades individuais e prejudicavam a economia, o que geraria uma crise social (Mazui, 2020). Nesse sentido, seu governo pautou as respostas à Covid-19 por duas estratégias. Por um lado, defendeu o funcionamento de grande parte do setor produtivo e, por outro, os indivíduos que contraíssem a doença seriam tratados pelo “kit covid” (incluindo hidroxicloroquina [HCQ] e ivermectina [IVC]) que, apesar de não ter eficácia comprovada, apresentaria resultados supostamente promissores.
Em meio às disputas pela direção das políticas de saúde, críticos apontaram que Bolsonaro se valeu do “uso de desinformação e da retórica anticiência para desacreditar as instituições que se colocavam como barreiras a sua agenda” (Fonseca et al., 2021, p.1252, tradução própria). Nesse contexto, partidos de oposição abriram um inquérito legislativo para apurar as “omissões do governo federal no combate à Covid-19” e investigar violações de direitos por Bolsonaro “ter sistematicamente deixado de seguir as orientações científicas de autoridades sanitárias” (CPI, 2021, p.13).
Durante as sessões da CPI, houve trocas de acusações e a tentativa de demarcação entre argumentos “políticos” e “técnicos”, o que serviu para reforçar ou refutar as diferentes teses sobre as responsabilidades pela crise sanitária. Na medida em que os grupos em disputa mobilizaram a legitimidade científica para sustentar suas posições, tornou-se central a própria discussão acerca do que define a ciência e quais atores estão autorizados a falar em nome dela. Exploramos aqui dois temas específicos nessas disputas. O primeiro é a natureza do método científico e a relação entre experimentos e a realidade. A partir do debate sobre a “pirâmide de evidências” e a relevância estatística de meta-análises, a base do governo sustentou que o grau de incerteza em torno da pandemia legitimava a promoção de tratamentos experimentais. O segundo tema envolve a construção da noção de credibilidade científica dos diferentes “especialistas” chamados a prestar depoimento e a crítica à politização da ciência.
Métodos científicos, evidências e incertezas
A literatura sobre negacionismo tem apontado que populistas de extrema-direita questionam a validade do método científico e avançam uma epistemologia alternativa que “se afasta de formas institucionalmente codificadas de conhecimento, como modelos estatísticos e estudos epidemiológicos, buscando legitimação através da experiência individual” (Fonseca et al., 2022, p.18). No entanto, as disputas sobre o uso do “kit covid” não giraram apenas em torno do conhecimento tácito ou da experiência pessoal dos interlocutores, mas mobilizaram argumentos acerca da natureza das evidências científicas, da qualidade de meta-análises e da validade de diferentes métodos.
De forma orquestrada, os depoentes chamados pela base governista se apresentaram munidos de estudos que apontavam efeitos positivos do “kit covid”, especialmente se as drogas fossem fornecidas de forma preventiva. Mayra Pinheiro, por exemplo, submeteu à CPI um grupo de 2.4 mil estudos que, em sua perspectiva, referendavam o uso compassivo da HCQ (Pinheiro, Sessão 1).3 Fazendo referência ao mesmo corpo de estudos, Francisco Alves defendeu a legitimidade do tratamento com HCQ em tempos de incerteza: “A gente precisa desapaixonar um pouco o assunto e focar. Não dá pra falar que não tem evidência com tanto artigo publicado. Então, vamos agora discutir os níveis de evidência. Dá pra fazer política pública com isso? Sim ou não?” (Alves, Sessão 5).4
Ao invés de avaliar cada um dos estudos apresentados, os senadores da oposição buscaram uma forma de diferenciação a partir da escolha metodológica das pesquisas, pois essa indicaria o padrão de qualidade da evidência encontrada. O senador Alessandro Vieira, por exemplo, questionou Mayra Pinheiro afirmando ter em mãos uma nota técnica produzida por cientistas da Universidade Federal de Sergipe em que constavam mais de 2.8 mil estudos sobre tratamentos para a Covid-19. O problema, segundo Vieira, era que havia apenas 14 ensaios clínicos randomizados (RCT) e que nenhum destes apontava benefícios da HCQ. Vieira lembrou ainda que, ancoradas nos RCT mencionados, entidades científicas, entre elas a OMS, tinham recomendado a interrupção de tratamentos com HCQ, uma decisão que não poderia ser revertida apenas pelas evidências anedóticas ou resultados provisórios dos estudos observacionais apresentados por Pinheiro (Vieira, Sessão 1).
O caráter autoritativo dos RCT, no entanto, permaneceu em disputa durante a CPI. Ricardo Zimerman, outro dos especialistas convocados pela base governista, apontou que pesquisas não se limitam a RCT e que a ciência médica é pautada por uma “pirâmide de evidências”.5 Em sua fala, Zimerman reforçou a relevância dos RCT, que estariam próximos ao topo da pirâmide, mas argumentou que esses estudos são de difícil implementação, o que os torna escassos. Para ele, a adoção de pesquisas observacionais no processo de produção de evidências seria prática comum na ciência. Mostrando aos senadores dois artigos publicados no New England Journal of Medicine, Zimerman argumentou que, em momentos de urgência sanitária, era esperado que cientistas considerassem os diferentes graus de relevância estatística de outros grupos de evidências, incluindo-os com o devido cuidado estatístico nas meta-análises, essas sim, o topo da pirâmide. Em suas palavras, “medicina baseada em evidência não é ensaio clínico randomizado, é se posicionar com a melhor evidência disponível” (Zimerman, Sessão 5).
Quando outros especialistas foram chamados a arbitrar sobre o tema, o debate se tornou ainda mais específico, com diversos testemunhos sobre a composição de meta-análises, sua relevância estatística e, fundamentalmente, sua adequação enquanto avalizadoras de políticas públicas. Luana Araújo afirmou que, apesar de importantes, as meta-análises não poderiam ser a única régua para atestar a qualidade das evidências.6 Instada a avaliar alguns dos estudos mencionados por senadores governistas, Araújo argumentou que esses eram meros compilados de pesquisas metodologicamente inadequadas, o que as tornava enviesadas. Como explicou aos membros da CPI:
É preciso compreender como funciona o processo científico... Meta-análise é uma ferramenta estatística que faz o que? Pega um monte de estudos, junta e espreme pra achar alguma coisa com força [estatística]. Só que, dependendo daquilo que você faz... o seu resultado é uma porcaria ou ele é positivo. (Araújo, Sessão 3)
Natália Pasternak corroborou o argumento de Araújo.7 Para ela, meta-análises, por si só, não dão robustez estatística para seus resultados e os estudos que apontavam efeitos positivos da HCQ se pautavam apenas por evidências anedóticas. “O plural de evidências anedóticas”, Pasternak afirmou em seu depoimento, “não é evidência científica... [M]eta-análises são tão boas quanto os estudos que elas incluem... Se a gente fizer uma meta-análise só com estudos fracos, a gente vai ter uma meta-análise fraca” (Pasternak, Sessão 4).
Ao longo das sessões, surgiram ainda denúncias de que interesses políticos e econômicos impediam a realização de mais RCT e, logo, a produção de mais evidências sobre o “kit covid”. Mayra Pinheiro afirmou que seria impossível conseguir a aprovação para o uso de HCQ no tratamento da Covid-19 não pela ausência de bases científicas, mas porque as agências reguladoras exigiam um processo de testagem muito caro e demorado. Como ela explicou aos senadores, a aprovação demandava que a indústria farmacêutica apresentasse um estudo pivotal, mas esses
[...] duram 4 anos e custam 19 milhões de dólares. São necessários... dois estudos com cerca de 4 mil pacientes, em cerca de 10 anos... Essas medicações [HCQ e IVC] não têm patentes, elas são baratas. Então não existe interesse, hoje, da indústria farmacêutica de que essas medicações sejam objeto de estudo. (Pinheiro, Sessão 1)
Ainda respondendo sobre o reduzido número de RCT, Nise Yamaguchi afirmou que a politização do tratamento precoce no Brasil teria impedido a livre produção científica sobre o tema.8 Segundo seu testemunho, aqueles que realizavam testes com os medicamentos do “kit covid” foram submetidos a um “policiamento ideológico”, sendo pressionados a suspender os experimentos e sufocar seus resultados (Yamaguchi, Sessão 2). Além disso, muitos pesquisadores, acostumados apenas às regras do debate científico, se viram em meio a críticas de jornalistas, ativistas e políticos que não possuíam qualquer conhecimento especializado para abordar o tema. Como frisou Francisco Alves:
De repente, apoiar o tratamento de pessoas doentes com medicamentos off-label suportados por dezenas de estudos científicos passou a automaticamente lhe colocar em um lado do espectro político nacional. As pessoas que não comungam desse espectro passaram a atacar as drogas e os médicos que as prescreviam, rejeitando o tratamento com um discurso recheado de ódio, sofismas e inverdades... Médicos renomados, dedicados, que tentavam explicar o absurdo disso começaram a ser tachados de negacionistas ou obscurantistas. (Alves, Sessão 5)
Caso a politização não tivesse ocorrido, afirmou Alves, a sociedade brasileira teria percebido que a proibição do “kit covid” gerou um “apagão de condutas terapêuticas” e que grande parte dos senadores promoviam uma espécie de “xiitismo evidencionista” não para melhorar o bem-estar social, mas para politizar o debate científico de forma a prejudicar Bolsonaro. Segundo Alves, epidemiologistas, em geral, recusam a ideia de que:
[...] apenas os estudos considerados padrão ouro ou classe 1A [o topo da pirâmide de evidência] poderiam chancelar tratamentos para a Covid-19 e todos os demais estudos precisam ser refutados... em média, menos de 10% dos procedimentos de tratamento médico no mundo possuem esse chamado nível de evidência máxima, erroneamente chamado por alguns de “comprovação científica”. (Alves, Sessão 5)
Para ele, era de se esperar que a ciência, ainda mais em momentos de urgência, produzisse resultados contraditórios. Frente a uma doença até então desconhecida, o consenso não seria uma virtude, mas a sinalização de ingerência política na liberdade de pesquisa e experimentação.
Em resumo, os depoimentos de Mayra Pinheiro, Nise Yamaguchi, Ricardo Zimerman e Francisco Alves foram especialmente importantes para que senadores governistas sustentassem a existência de incertezas sobre os efeitos do “kit covid” e, portanto, a legitimidade das controvérsias científicas em torno do tratamento precoce. Como concluiu o senador Girão, os depoimentos “técnicos” fornecidos à CPI comprovaram que ainda existia dissenso entre pesquisadores e, frente à incerteza, era preciso evitar polarização política: “Nós ouvimos os dois lados e ambos apresentaram seus estudos randomizados, apresentaram meta-análises, apresentaram duplo-cego e resultados clínicos... vamos deixar a política de lado, porque isso faz com que a gente perca a razão, perca foco, perca a verdade” (Girão, Sessão 4).
Quem deve falar pela ciência?
Os debates sobre a qualidade das evidências produzidas acerca do “kit covid” esbarraram em outro eixo de enfrentamento da CPI, a credibilidade das diversas “figuras da ciência” chamadas a prestar depoimento. Enquanto a literatura sobre movimentos anticiência costuma apontar que o negacionismo mobiliza “discursos afetivos” que “tornam menos relevantes as competências formais... dos atores em quem deveríamos confiar” (Fonseca et al., 2022, p.20, tradução própria), evidenciamos que a construção da fronteira entre especialistas e charlatões não se dá a despeito de credenciais científicas, mas justamente na busca por marcadores formais de expertise. Muitas das sessões da CPI giraram em torno da análise de currículos, da produção acadêmica e de posicionamentos públicos dos especialistas. Senadores governistas buscaram demostrar que aqueles que criticavam Bolsonaro eram “falsos experts” que não tinham qualquer relevância científica e que estavam na comissão por suas inclinações políticas, e não para arbitrar cientificamente sobre as medidas de saúde do governo.
Esse debate começou a ganhar relevância ainda durante os depoimentos de Mayra Pinheiro e Nise Yamaguchi. Ambas participaram dos processos de tomada de decisão das políticas de saúde: a primeira exerceu cargo de gestão pública, defendendo sua capacidade técnica a despeito da experiência nula com pesquisas científicas, e a segunda se apresentou como uma cientista que presta consultorias a órgãos públicos. Enquanto Pinheiro foi apelidada pela oposição de “capitã cloroquina” por sua defesa enfática do medicamento, Yamaguchi foi questionada por sua atuação autointeressada, uma vez que estaria em plena campanha pela nomeação para o ministério da saúde.
Yamaguchi iniciou o depoimento se distanciando do debate político. Ao evocar sua experiência enquanto especialista ligada a sociedades científicas e a políticas públicas desenvolvidas em países da América Latina e da Europa, Yamaguchi se antecipou às críticas: “eu queria... colocar os dados científicos antes da discussão política, porque a política confere novos rumos e essa discussão é dos senhores. O meu objetivo é estar aqui como perita técnica... eu não te[nho] partido político e est[ou] aqui sem qualquer conflito de interesse” (Yamaguchi, Sessão 2). Yamaguchi foi insistentemente questionada sobre falas polêmicas do presidente e a política de isolamento vertical promovida pelo governo, essa atribuída às decisões do gabinete secreto do qual ela faria parte. Em suas respostas, Yamaguchi foi hábil em se esquivar:
A gente [cientistas] não pode dar opiniões, a gente tem que dar evidências científicas... Eu não tenho como dizer [se a postura de Bolsonaro foi acertada] porque isso não é uma decisão científica, é uma decisão política, é uma decisão econômica. É uma decisão com muitas coisas que eu desconheço... eu deixei claro, a minha opinião é técnica e eu vou me manter nessa posição. (Yamaguchi, Sessão 2)
O cenário, no entanto, mudou durante as arguições. Senadores da oposição apostaram na diferenciação entre a figura do médico, que se aplicaria a Yamaguchi, e do cientista. Enquanto o primeiro teria competência apenas para acompanhar o tratamento de pacientes, seriam os cientistas que ocupariam o papel de especialistas e, portanto, detentores de saberes capazes de guiar políticas de saúde. Zenaide Maia resumiu a crítica: “a senhora é uma oncologista famosa, uma imunologista, uma pneumologista... por que resolveu fazer ciência de uma hora pra outra?” (Maia, Sessão 2). Otto Alencar, por sua vez, optou por sabatinar o conhecimento médico de Yamaguchi. Em uma fala recheada de perguntas sobre a natureza dos vírus, a história de pandemias e os efeitos de diferentes medicamentos, Alencar refutou a autoridade epistêmica da depoente:
A senhora não sabe nada de infectologia. Nem estudou, doutora. A senhora foi aleatória mesmo, superficial... Me desculpe, eu não queria constranger a senhora, porque eu vi desde o começo que a senhora entendia de oncologia e imunologia, mas não tinha nada de conhecimento de infectologia... A senhora certamente não leu, não estudou... A senhora não podia de jeito nenhum estar debatendo sobre um tema que não é do seu domínio... Eu fiz um testezinho simples com ela e ela não sabia de nada. Qualquer menino de segundo ano [de faculdade acertaria] ... isso é beabá e a senhora não sabe. A senhora jogou no escuro... a senhora brincou com a saúde do povo brasileiro. (Alencar, Sessão 2)
As indagações de Alencar repercutiram negativamente. Para parte dos jornalistas que acompanhavam a sessão ao vivo, Alencar não se limitou a contrapor as estratégias de desinformação dos aliados de Bolsonaro, mas abusou de colocações misóginas (Medeiros, 2021). Coube ao senador Marcos Rogério fazer a defesa de Yamaguchi e retraçar a linha entre saberes científicos e políticos na CPI:
Não cabe a quem não tem conhecimento técnico questionar uma cientista com mais de 40 anos de trabalho prestado e de respeito à sociedade... Me parece que os cientistas aqui são os senadores... Nós somos os pais da ciência, porque qualquer cientista que venha aqui não pode se manifestar... [Yamaguchi] tem um doutorado em pneumologia... Não estamos diante de palpiteira sem formação na área. (Rogério, Sessão 2)
Nos dias que se seguiram ao depoimento de Yamaguchi, Luana Araújo e Natália Pasternak apresentaram suas perspectivas sobre as bases científicas das políticas de saúde promovidas pelo governo Bolsonaro. Durante essas sessões, o jogo de disputa sobre autoridade epistêmica se inverteu. Enquanto os depoentes buscaram se colocar como porta-vozes da ciência, membros da base aliada do governo questionaram suas credenciais e trabalharam para trazer à tona suas inclinações políticas.
Luana Araújo, por exemplo, abriu o depoimento reafirmando sua posição fora do campo da política:
Eu não pertenço ao mundo de vocês. Eu não sou um ser da política. Eu sou médica, infectologista, epidemiologista, técnica... Eu represento uma classe de cientistas... eu tenho colocado aqui um embasamento técnico que é condizente com as maiores instituições e especialistas no assunto no mundo. Então, quando os senhores questionam o que eu estou dizendo... não estão questionando a mim. (Araújo, Sessão 3)
O currículo de Araújo, no entanto, foi usado pelo senador Luis Carlos Heinze para levantar dúvidas sobre sua competência. Heinze afirmou que Araújo não tinha diploma de doutorado ou qualquer experiência em “laboratórios relevantes” ou pesquisas de “alto nível”. O senador passou então a listar alguns especialistas internacionais que defendiam o uso de HCQ. Para ele, a métrica central a ser usada pela CPI para averiguar a reputação dos especialistas e, portanto, sua validade enquanto porta-vozes da ciência, deveria ser a avaliação entre os próprios pares, o que poderia ser constatado através das citações de pesquisas publicadas. Heinze inquiriu então Araújo sobre seu “índice h” de citações de obras acadêmicas. “A senhora sabe o índice h dos cientistas?”, perguntou Heinze, “Aqui: Didier Raoult, índice h 192; Peter McCullough, índice h 113; Dr. Vladimir Zelenko, 130; Satoshi Ōmura, 85; Luc Montagnier, 78. Todos esses cientistas recomendam tratamento precoce” (Heinze, Sessão 3). Por fim, o senador informou que Araújo tinha um índice h de zero, o que comprovaria sua inadequação ao papel de “especialista”.
Pasternak seguiu linha semelhante à argumentação de Araújo e se apresentou aos senadores como uma “voz da razão” em meio aos “jogos de interesse” da política. No entanto, de modo análogo ao que aconteceu com Araújo, o depoimento de Pasternak foi seguido pela arguição de senadores que buscaram questionar suas credenciais e objetividade. Os senadores citaram diversos momentos em que Pasternak se posicionou publicamente contra Bolsonaro em questões que não eram de sua alçada de especialidade. Esses casos comprovariam a inclinação da depoente contra o presidente e levariam a uma postura ideologicamente enviesada em sua análise. O senador Heinze repetiu a sabatina curricular que fizera anteriormente e apontou que, apesar de Pasternak ter um doutorado em microbiologia, sua atuação profissional estava voltada para a divulgação cientifica, não para a rotina de laboratório. Retomando a métrica do índice h, Heinze apontou que a contribuição de Pasternak para a ciência seria irrisória já que seu índice h é quatro.
Frente a esses questionamentos, o senador Girão propôs que a CPI ouvisse apenas cientistas “neutros” e de “alto nível”, o que não teria ocorrido no caso dos convidados da oposição. Para o senador, muitos dos cientistas que condenam o governo se deixam levar por interesses partidários e acabam perdendo sua credibilidade. “Se tiver algum cientista que seja bolsonarista, nós temos que tirar [também]. Nós precisamos de cientistas que não tenham vínculo político-partidário porque isso atrapalha. Isso tira a credibilidade” (Girão, Sessão 4).
Quando perguntado sobre as credenciais daqueles que foram convidados pela oposição para falar em nome da ciência, Zimerman lamentou que muitos colegas de profissão corromperam trajetórias idôneas de pesquisa e se contaminaram pela política. Dessa forma, teriam deixado de lado a neutralidade, passando a produzir um conhecimento enviesado. Segundo Zimerman,
O que ocorre é uma espécie de viés de confirmação. Se você já decidiu por um lado, você só vai ler aquilo que reforça o que você diz e não vai ler o que diz ao contrário, o que em inglês chamam de cherry-picking... O que eu queria era pedir para vocês despolitizarem... Vamos dar uma vez à ciência (Zimerman, Sessão 5)
A análise dos enfrentamentos na CPI sugere, portanto, que a estrutura do discurso governista mimetiza os enunciados científicos na busca por descortinar os fatos que estariam escondidos por relações de poder. Os debates indicam que, enquanto a pandemia embaralha a separação entre ciência e política, aqueles acusados de “negacionismo” buscaram recuperar um parâmetro externo de regulação da vida social e um mecanismo de controle do engano e da ideologia. Houve uma demanda radical pela objetividade que eles diziam ter sido corrompida.
Acúmulo de credibilidade e as fronteiras da ciência
Nos últimos anos, a defesa da ciência tem apostado na reificação da demarcação moderna. Hoffmann (2018, p.448, tradução própria), por exemplo, argumenta que:
Ciência e política apelam para repertórios bem diferentes de justificação. A política, como doenças infeciosas, é quente. Bons políticos se valem do carisma e da capacidade de persuasão... A ciência, em contraste, opera de um modo mais frio e calculado... Cientistas mais eficazes mobilizam o poder de persuasão do rigor metodológico e as armas de pesquisas realizadas.
Porém, o que mostramos acima é que a tentativa de divisar enunciados científicos de paixões mundanas oferece pouco arsenal crítico para entender a assim chamada política da pós-verdade. A visão heroica da ciência não foi atacada na CPI e os políticos bolsonaristas não competiram com cientistas por autoridade epistêmica. Como um dos senadores que apoiam Bolsonaro colocou: o problema são os “leigos e palpiteiros achando que conhecem alguma coisa de virologia e de transmissibilidade. Eu não conheço e não posso fazer afirmações... vamos deixar os especialistas falarem. Se não, a gente fica passando a ideia de que nós é que somos especialistas e isso está errado” (Rogério, Sessão 5).
Mas, se a autoridade da ciência está fora de disputa, surgiram questionamentos sobre quem poderia falar legitimamente pelos fatos científicos. Como argumentam Aradau e Huysmans (2019, p.50, tradução própria), “a questão central não é simplesmente epistemológica ou metodológica, mas entender como o conhecimento é construído atualmente - como o conhecimento é acreditado ou desacreditado”. Trata-se, portanto, de um problema inerentemente político, já que as controvérsias não se resolvem pela determinação a priori de onde a verdade realmente está, mas sim por estratégias de acúmulo dos múltiplos elementos que conferem credibilidade científica aos enunciados em disputa (Latour, 1987). Em resumo, para compreender como se deu a construção de autoridade epistêmica durante a pandemia, não basta avaliar as bases metodológicas das diferentes pesquisas sobre formas de tratamento da Covid-19, como propuseram os senadores da oposição. É essencial observar como práticas de laboratório, dados, vírus, técnicas de visualização e mensuração, políticos e instituições se organizam de forma a produzir argumentos que se sustentam dentro e fora dos laboratórios (Latour; Woolgar, 1986). Os enunciados científicos são porta-vozes de inúmeros elementos conjugados, e é dessa composição que advém sua autoridade.
Enquanto análises assimétricas insistem em depurar esses elementos para chegar à verdade objetiva, universal e livre de amarras sociais, sugerimos neste artigo que a CPI se revelou um locus importante para práticas de demarcação que denotam autoridade epistêmica a alguns em detrimento de outros (Gieryn, 1983). A construção dessa fronteira não se deu enquanto um limite tecnocrático imposto pela ciência às deliberações políticas, mas ocorreu através da composição de reivindicações transepistêmicas que mobilizaram, ao mesmo tempo, enunciados científicos, paixões políticas e interesses econômicos (Knorr-Cetina, 1982). Durante a pandemia, todos os dias, os jornais e as redes sociais discutiam novos achados, desbancavam hipóteses que pareciam plausíveis, comemoravam evidências de artigos recém-publicados e tentavam fazer sentido das controvérsias em curso. Nesse cenário, a construção da credibilidade passou pela mobilização de enormes contingentes de atores (políticos, jornalistas, cientistas), saberes (epidemiologia, microbiologia, infectologia, sociologia), instrumentos (de coleta de dados, mensuração, visualização) e instituições (OMS, associações científicas, corporações de classe, ministérios). Foi na conturbada dinâmica de agregação desses múltiplos elementos que se constituiu a autoridade sobre o fenômeno representado. As teorias e cientistas bem-sucedidos - com mais credibilidade científica - foram aqueles que somaram “mais ‘aliados’ a seus enunciados, traduzindo (forçando, moldando, seduzindo e organizando) o interesse de outros e, assim, se tornando seus representantes” (Duarte; Benetti, 2022, p.124).
O desafio, portanto, não é decantar a ciência pura de suas falsificações. Reificar esse ideal é, inclusive, contraproducente, pois despe o enunciado daquilo que o legitima no mundo. Como aponta Latour (1989, p.114), a verdade não existe sozinha e não serve para pacificar as disputas políticas: “Verdade é o que é sustentado e não aquilo que sustenta” (tradução própria). Ou seja, os fatos científicos só se consolidam e se disseminam quando amparados por instituições, divulgados pela mídia, assentados no sistema educacional e reproduzidos por uma cultura compartilhada, de modo que a disputa contra os “negacionistas” não é para separar novamente os fatos da política, mas por criar tantas associações em torno de determinados enunciados que sua contestação seja cada vez mais difícil.
Considerações finais
A literatura sobre as relações de populistas reacionários com a ciência é cheia de jargões. É possível ler que a “sociedade do pós-fato” (Manjoo, 2008) está sofrendo com uma “decadência da verdade” (Kavanagh; Rich, 2018) trazida por “campanhas de desinformação” (Soares et al., 2021). Em resumo, “a era da primazia da razão sobre os sentimentos, que começou com a revolução científica, chegou ao fim” (Chotiner, 2019, tradução própria). Nessa perspectiva, os ECT seriam culpados por emprestarem uma roupagem progressista e analítica à suspeita contra ciência. É nesse contexto, por exemplo, que Latour é tachado de “filósofo da pós-verdade” (Kofman, 2018) e que muitos dos estudos sobre a produção científica são acusados de confundir crítica com negacionismo (Nascimento, 2022).
A análise dos enfrentamentos na CPI, no entanto, evidenciou duas dinâmicas negligenciadas por essa literatura. Em primeiro lugar, “negacionistas” dobraram a aposta na demarcação moderna e acusaram seus adversários de corromper e politizar a ciência, de modo que essa “permanece como um recurso chave nos debates sobre mudanças políticas” (Durant, 2017, tradução própria). Argumentamos ainda que a validação do conhecimento científico (o acúmulo de credenciais e a prática de demarcação de fronteiras) é um processo que ocorre tanto nos espaços tradicionais da ciência (laboratórios, publicações acadêmicas e seminários) quanto nos diferentes círculos sociais (na mídia, na CPI, nas cortes de justiça).
A conexão entre esses dois argumentos é central para pensarmos a viabilidade da crítica na sociologia da ciência. Se o negacionismo floresce a partir da reivindicação das ferramentas tradicionais de validação do conhecimento científico, momentos de crise epistemológica não deveriam ser seguidos pela retração do campo crítico, pelo contrário. Enquanto a defesa da ciência moderna é incapaz de compreender os mecanismos que sustentam a política da pós-verdade, são as pesquisas que dão conta da construção do conhecimento científico por meio de disputas em múltiplos campos epistêmicos que nos permitem entender por que determinados enunciados têm autoridade epistêmica e outros não.
Esse argumento tem implicações políticas relevantes. Muito antes da pandemia, Collins e Evans (2007) já apontavam que, contra o populismo tecnocientífico, não podemos impor uma tecnocracia na qual a figura do especialista recupera o monopólio do saber e a capacidade de impor políticas à revelia de processos democráticos de tomada de decisão. Descarte ou submissão não podem ser os únicos modos de interação entre ciência e sociedade. Ao recusar a noção de que o debate público é alheio à ciência ou que cabe aos cientistas resgatar o povo das falhas da política, evitamos também que o discurso científico sirva de atalho para movimentos políticos que buscam avançar projetos excludentes e autoritários.
Analisar as bases plurais dos enunciados científicos permite fazer uma crítica aos populistas reacionários sem reiterar o discurso da autonomia total do campo científico e, fundamentalmente, sem aceitar a hierarquização epistêmica que sustenta a ciência moderna. É claro que isso vai remeter aos debates sobre democratização da produção de conhecimento e ao status político da expertise (Callon et al., 2009). A crítica à hierarquização epistêmica implica na heteronomia do campo científico e na necessidade de apoiar reivindicações de expertise em relações mais simétricas. Mas se a política da pós-verdade avança principalmente por outros caminhos, temos mais a ganhar com a democratização epistêmica do que com projetos que buscam restaurar velhas formas de autoridade e de dominação.
Agradecimentos
A pesquisa para esse artigo foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processos n. 2020/05628-1 e 2013/07923-7.
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Notas
-
1
O artigo não busca minorar as críticas sobre o desmantelamento de políticas de educação, saúde e ciência durante o governo Bolsonaro. Contudo, a pesquisa aponta que o simples rótulo de “negacionismo” não parece decifrar adequadamente a dinâmica política do bolsonarismo.
-
2
Cesarino (2022) mapeia as diferentes estratégias discursivas da extrema-direita e identifica manifestações que apelam a “eu-pistemologia” convivendo e complementando reivindicações amparadas no conhecimento científico organizado de acordo com os tradicionais padrões institucionais.
-
3
Médica, secretária de gestão do trabalho e da educação na saúde durante a pandemia, defensora do chamado tratamento precoce, o que lhe rendeu o apelido de “Capitã Cloroquina”.
-
4
Médico, infectologista, apontado como integrante do suposto gabinete paralelo de assessoramento da Presidência da República nos primeiros momentos da pandemia.
-
5
Médico, infectologista.
-
6
Médica, infectologista. Foi anunciada em maio de 2021 como secretária extraordinária de enfrentamento à Covid-19 do Ministério da Saúde, mas teve sua nomeação barrada por posições públicas contrárias ao chamado tratamento precoce.
-
7
Bióloga, divulgadora científica, fundadora do Instituto Questão de Ciência, organização não governamental dedicada à divulgação científica.
-
8
Médica oncologista, mencionada como integrante do gabinete paralelo que assessorou a presidência da república na recomendação da HCQ como de tratamento à Covid-19. Candidatou-se à deputada federal no estado de São Paulo em 2022 e não foi eleita.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025