RESUMO
O artigo comenta de forma sintética alguns dos desafios contemporâneos com que se defronta a democracia, recorrendo à perspectiva histórica para pensar questões atuais tais como o declínio dos níveis de confiança nas instituições políticas e a emergência de projetos populistas, aspectos que interpelam a democracia seja como ideal normativo, como aparato institucional, seja como procedimentos cristalizados. Levando em conta os grandes impasses contemporâneos, mas sem subscrever interpretações fatalistas ou messiânicas, o artigo defende que embora o caráter intrinsecamente expansivo da democracia não garanta por si só a sobrevivência da democracia, ele pode prover a base para o desenvolvimento de estratégias políticas que, combinando recursos humanos e tecnológicos, logre fomentar formas inovadoras para promover justiça, inclusão e participação, os elementos que dão vida à convivência democrática.
PALAVRAS-CHAVE:
Democracia; Confiança; Desigualdade; Exclusão
ABSTRACT
The article examines contemporary challenges to democracy through a historical lens, focusing on issues such as declining trust in political institutions and the rise of populist movements. These phenomena challenge democracy as a normative ideal, an institutional framework, and a set of established procedures. While acknowledging significant contemporary impasses, the article avoids both fatalistic and overly optimistic interpretations. Instead, it argues that the inherently expansive nature of democracy, though insufficient on its own to ensure its survival, offers a foundation for crafting political strategies that leverage human and technological resources. These strategies can foster innovative approaches to advancing justice, inclusion, and participation - key elements that sustain democratic coexistence.
KEYWORDS:
Democracy; Trust; Inequality; Exclusion
É inegável que no contexto histórico atual cresce a percepção segundo a qual a democracia enfrenta grandes desafios. Sinais claros de fenômenos diversos que ferem as normas democráticas têm lugar não apenas em democracias frágeis, mas também em sistemas democráticos maduros. Populismos vicejam em contextos os mais diversos, enterrando de vez a crença disseminada a partir dos meados do século passado, segundo a qual obstáculos e retrocessos da democracia seriam fenômenos característicos do insuficiente desenvolvimento político e econômico de países retardatários na trajetória que as sociedades “avançadas” tinham trilhado.
No amago dos próprios regimes políticos até então considerados democracias consolidadas eclodem sinais de descontentamento e questionamentos mais ou menos radicais das regras do jogo democrático. De fato, tais manifestações emergem no Norte e no Sul globais, encontram eco nas promessas de lideranças emergentes que se projetam como outsiders, como alternativas antipolíticas ancoradas em apelos carismáticos. Se a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 ou os ataques de 8 de janeiro de 2023 aos três poderes em Brasília são evidências emblemáticas que nos vêm à mente, a verdade é que os princípios e práticas que compõem as regras consagradas da ordem democrática têm sido colocados a duras provas em diversos contextos nacionais.
A literatura especializada chama a atenção para o declínio nos níveis de confiança nos governos, nos partidos, na mídia, enfraquecendo assim o valor atribuído pelos cidadãos às normas democráticas (Lammert; Vormann, 2020; Dodsworth; Cheeseman, 2020). Apelos populistas de diversos formatos canalizam frustrações materiais, apelam a pautas culturais conservadoras, fomentam polarizações, propondo alternativas autoritárias aos mecanismos políticos democráticos em vigor (Applebaum, 2020;Edel, 2019; McCoy; Rahman; Somer, 2018).
No Brasil, o otimismo cauteloso das análises sobre a redemocratização nos anos pós-ditadura militar cedeu lugar à justificada preocupação com a popularização de noções abertamente antidemocráticas, demonização da atividade política, e mais recentemente, tal como observado acima, a malograda afronta ao resultado do processo eleitoral que criaria as condições para uma interferência cívico-militar. É interessante lembrar que tanto nesse caso como em tantas outras bem ou malsucedidas tentativas de viciar ou contestar resultados eleitorais aqui e alhures, a justificativa invocada é sempre salvaguardar a verdadeira democracia contra o comunismo, os políticos corruptos, o sistema viciado. Enquanto tais argumentos são invocados para justificar o descontentamento, fazem parte do elenco das motivações da insatisfação diversas causas fundantes como aspirações de consumo frustradas, falta de reconhecimento social, sentimentos de privação relativa, assim como a privação efetiva de direitos básicos que experimentam grandes contingentes populacionais em sociedades cada vez mais desiguais.
São muitas as análises disponíveis sobre questões relativas aos desafios que as democracias contemporâneas enfrentam, iluminando diversos ângulos dos problemas em pauta. O que proponho aqui não é uma revisão dessa vasta literatura, nem uma nova abordagem ou uma interpretação original sobre as questões em pauta, mas simplesmente uma breve reflexão que tangencia alguns dos problemas com que se defronta a democracia no presente. Embora minha inserção na sociologia política não me credencie como especialista no tema, ela molda em certa medida minhas reflexões.
Nas páginas que se seguem, faço um breve comentário sobre a noção de democracia para em seguida comentar algumas questões ilustrativas dos desafios que se colocam hoje para os sistemas democráticos. Como justificar meu tratamento ligeiro, e por vezes abstrato, de algo tão relevante? Posso apenas sugerir que, como nos lembrava Max Weber (1949), sempre temos que escolher uma lente, um ângulo particular para captar nosso objeto que sendo histórico está imerso no fluxo do devir incomensurável. Minha opção aqui por uma lente grande angular permite incluir muita coisa na foto da democracia hoje, mas certamente não logra foco satisfatório nas imagens incluídas. De qualquer forma, as múltiplas dimensões da questão democrática no presente, tanto as que destaco aqui, como as muitas outras que não couberam na minha “fotografia” permanecem vivas, desafiando-nos tanto a buscar mais esclarecimento sobre a complexidade dos problemas envolvidos, como a refletir sobre estratégias realistas para confrontá-los.
Quando falamos em democracia temos em mente os princípios básicos de igualdade política, governo da maioria, direitos de minorias e respeito às liberdades individuais. Esse conjunto de princípios pode ser abordado como ideal normativo, como forma de organizar politicamente uma sociedade, ou ainda como maneira de governar. Ou seja, valores, instituições e procedimentos são dimensões relevantes na conformação do que designamos como democracia. Que os conceitos com que trabalham os teóricos e os pesquisadores empíricos privilegiem uma ou outra dessas dimensões é requisito analítico que provê o recurso necessário para fazer frente à inexorável complexidade do real que evoquei acima.
Visto pelo prisma da cultura, a ideia de democracia é um valor constitutivo do que comumente associamos à moderna civilização ocidental. Sem nos determos aqui na questão da emergência e consolidação das próprias noções de moderno e de Ocidente na conformação e exercício de configurações de poder, não há dúvida que Estados nacionais na Europa patentearam um modelo de política que se impôs como referência fundamental na constituição dos Estados nacionais. Mesmo em contextos que se afastam explicitamente do modelo democrático-liberal, são recorrentes argumentos que justificam isso como adaptações ou correções para viabilizar a própria democracia. Na literatura ou no diálogo com cientistas sociais de tradições culturais distintas da ocidental, essa relação tensa entre a ideia de democracia como um valor universal e seu entendimento substantivo in situ é constantemente evidenciada. Embora reconhecendo a inevitabilidade dessa tensão constitutiva, o que pretendo aqui é apenas destacar alguns dos muitos desafios que os princípios, as instituições e as práticas democráticas canônicas enfrentam hoje.
O ideal democrático contemporâneo envolve o amplo espectro da cultura que, buscando inspiração na tradição grega, configurou-se na Europa Ocidental, se expandiu além dela, e enquanto princípio universalizante e expansivo passa por constante atualizações. Assim, se a noção moderna de democracia surge como herdeira de tradições da antiga Grécia, o conceito contemporâneo amplia o entendimento de igualdade perante as leis para incluir todos os indivíduos, institucionalizar instrumentos de representação política, garantir o direito de livre manifestação de opiniões. Claro está que essa ampliação ocorre muito lenta e gradualmente, e seguem persistindo demandas por limites a serem ultrapassadas, como nos mostram os movimentos contemporâneos por reconhecimento e inclusão.
Igualdade, cidadania e justiça são valores que se constituem em elementos essenciais da democracia, mesmo que essa conviva de facto com negações de tais valores e busque justificar coisas bastante contraditórias, como nos mostra o processo de colonização. Processos injustificáveis como o extermínio de populações originárias do chamado Novo Mundo, a escravização moderna das populações africanas que têm negada sua humanidade e são referidas como “instrumentum vocale”, ou a imposição de autoridade coercitiva por parte das potências coloniais, tudo isso encontrava justificativa implícita ou explícita no avanço do progresso, isto é, na imposição de um projeto civilizatório que se concebia universal e expansivo (Dumont, 1977).
Apesar de suas amplas transformações históricas, a democracia como um valor, os princípios democráticos básicos seguem funcionando como balizas éticas do exercício do poder, mesmo que a interpretação desses princípios dê margem a consideráveis matizes ou que violações explícitas deles se tornem rotina em contextos os mais variados. Como entender por que nos anos recentes a sobrevivência de diversos sistemas democráticos se veja desafiada, levando tantos analistas a discutir a “crise da democracia”? Abundam na literatura estudos sobre neopopulismos, queda da confiança nas instituições e nas pessoas, polarização, movimentos protofascistas, e tantos outros sinais de que o sistema democrático está sob séria ameaça (Levitsky; Ziblatt, 2018; Applebaum, 2020; Castells, 2018; Edel, 2019).
O recurso a uma breve incursão nas origens históricas da democracia moderna pode ser útil à compreensão dos desafios que ela enfrenta contemporanea- mente. Tomemos como ponto de partida a superação da ordem aristocrática, que estava ancorada na postulação de diferenças naturais entre nobres e plebeus, e na fundamentação do poder na vontade divina. Em clara oposição a tais fundamentos, a postulação de que não há diferenciação substantiva entre as pessoas é o eixo fundamental da ordem democrática. Todos nascemos iguais, somos todos indivíduos, e nossa individualidade, sendo o que temos em comum, é o que nos faz iguais. Ela nos iguala justamente porque temos em comum o fato de sermos todos singulares. Para sinalizar a violação dessa condição postulada como natural, a expressão então introduzida “desigualdade” desaloja a noção de “diferença” que a ordem estamental naturalizara. Nesse movimento, ainda que outras diferenças persistissem naturalizadas, a noção mesma de diferença enquanto tal se eclipsava. Assim, as mulheres são como que culturalmente codificadas como parte inerente aos homens enquanto indivíduos. Já os escravos, conforme já acima observado, reduzidos à condição de “instrumentos vocais” eram considerados “naturalmente” desprovidos de alma/espírito e, portanto, de igualdade.
O movimento histórico de contestação das diferenças de status introduziu o novo sentido da expressão “igualdade” que passa a se contrapor agora não mais à “diferente”, mas sim à nova expressão “desigualdade”. Igualdade e seu oposto desigualdade se tornam ideais relacionais que atuam como antídoto à ideia de diferenças naturais que vigorava na ordem aristocrática. O raciocínio subsumido nessa nova concepção da sociedade é que se todos somos indivíduos, essa individualidade é o que todos temos em comum, cada um de nós comportando assim uma singularidade. É importante ter em mente que essa igualização ocorre em ritmos e formas muito variadas, no tempo e no espaço, e nunca atinge uma forma acabada. É ilustrativo lembrar, por exemplo, que no imediato pós-guerra, a formulação original da Declaração Universal dos Direitos Humanos era que “todos os homens nascem livres e iguais”. Custou algum tempo de debate para que a versão oficial reconhecesse explicitamente que “todos os seres humanos nascem livres e iguais”. E é importante ressaltar que em parte significativa do mundo esse reconhecimento não é moeda corrente, já que a igualdade de gênero segue ignorada. Lembremos também que o direito à representação coletiva só foi conseguido pelos trabalhadores após longo período de lutas pelo direito à combinação de indivíduos, trabalhadores individuais, lograram que seus sindicatos atenuassem à desigualdade de fato garantida pelos diferenciais de renda e prestígio (Bendix, 1996).
Os parágrafos acima sugerem que a história contemporânea pode ser vista como um processo de expansão da democracia, ainda que com todas as suas distorções e deficiências e, mais ainda, que tal processo conviva com retrocessos e que vivenciemos todos, em grau maior ou menor, os riscos e ameaças de que falávamos antes. Talvez seja interessante voltarmos a Tocqueville para entender melhor essa dinâmica aparentemente contraditória que caracteriza a democracia no presente, ampliação por um lado e ameaças à sua sobrevivência por outro.
Refletindo sobre a democracia como processo histórico Tocqueville (2019; orig. 1835 e 1840) interpretou a introdução da noção de igualdade dos indivíduos como consequência inexorável do processo demográfico. Para ele, os limites físicos da dotação de terras, por um lado, e o crescimento demográfico natural, por outro, levariam à impossibilidade de manter os privilégios estamentais, provocando assim a igualização das pessoas. A esse processo inexorável de igualização ele chamou “democracia social”, processo demográfico natural que como tal se mostrava distinto do fenômeno político “democracia política” que seria resultante de formas consolidadas de exercício do poder. A democracia política, corresponderia para ele a um sistema de administração do mando que deveria levar em conta a vontade do povo, sem descurar, porém, o direito das minorias.
Originário da aristocracia, mas observador resignado do que via como emergência natural da democracia social, Tocqueville problematizou a democracia política, sobretudo porque a via como uma forma de ordenamento do poder que contrapunha à massa dos indivíduos igualizados pelo processo demográfico natural, a posição distante, solitária, e autônoma do mandatário que podia governar sem amarras. Nesse sentido, para ele a democracia política era naturalmente susceptível à emergência de governos despóticos.
Uma vez quebrado o sistema de equilíbrio tradicional que para Tocqueville contrapunha o monarca aos nobres que o cerceavam, como evitar que a democracia política degenerasse em forma autoritária de exercício do mando? Se a democracia social constitui-se em tendência natural inexorável, a democracia política enquanto arranjo político poderia ser configurada para contornar, ou pelo menos minimizar o risco de despotismo? Como evitar que a grande distância entre o governante e os governados fomentasse despotismo? Essa é a pergunta chave que ele busca responder em sua obra mais famosa, A Democracia na América (Tocqueville, 2019). Sem ignorar alguns aspectos que, mesmo na América, constituíam-se em sérios incubadores de possíveis despotismos no futuro, Tocqueville identificou ali elementos naturais e circunstâncias históricas, opções institucionais, e valores culturais que funcionavam na visão dele como antídotos eficazes contra o despotismo democrático.
No que diz respeito aos fatores naturais e históricos, a abundância de terras e o fato de que a sociedade americana já surge socialmente como uma sociedade de iguais, sem experimentar o ordenamento feudal/estamental são os aspectos que Tocqueville ressalta. Quanto às instituições sociais e políticas ele destaca sobretudo as cortes de magistrados que na sua visão poderiam constituir-se em um substitutivo do papel preenchido pelos nobres nos regimes monárquicos. Destaca também a instituição do júri popular que ele viu na América como uma forma exemplar de socializar os cidadãos no exercício de funções públicas. Por fim, no âmbito da cultura, dimensão a que Tocqueville se refere como “os costumes e os meios do coração”, constitui-se para ele o nível fundante das instituições. As salvaguardas democráticas residiriam em última análise na propensão a se associar que os indivíduos desenvolveram na América como recurso para lograr seus interesses particulares. A diversidade de interesses teria levado à formação de múltiplas associações com fins específicos, produzindo assim uma pluralidade de grupos de interesse. Sintetizando, podemos dizer que no caso da América as condições estruturais seriam dadas pela terra abundante e livre, pelas instituições e procedimentos rotinizados, pela proliferação de associações voluntárias e instituições como o júri popular. Já a propensão a juntar-se a outros para buscar interesses individuais específicos e diversificados seria o cimento que alicerçava os outros dois níveis, propiciando o substrato cultural que fomentava a confiança e ao mesmo tempo tornava possível o surgimento de freios ao despotismo.
Lembrar aqui a visão de Tocqueville sobre a democracia pode ser útil para refletir sobre os desafios e dilemas da democracia hoje. O balanço que emerge de sua visão da democracia política é que ela se constitui num arranjo delicado que pressupõe condições vitais difíceis de sustentar. Conforme observado acima, na visão elitista do autor, a democracia política corria sério risco de degenerar em despotismo, pois uma sociedade de iguais colocaria o governante em uma posição ímpar de mando sobre a massa dos indivíduos mediocrizados por sua própria igualdade.
Entretanto, como aristocrata desiludido ou realista, Tocqueville busca antídotos possíveis ao mando despótico. É assim que ele vê nos magistrados uma alternativa funcional ao cerceamento que os nobres exerciam aos desmandos do rei. O poder judiciário atuaria como uma âncora da democracia. Da mesma forma, o júri popular que tanto o impressionou em sua viagem à América lhe parecia oferecer aos cidadãos que exerciam temporariamente o papel de juízes uma experiência socializadora nas práticas do poder que contribuiriam para minimizar a ameaça autocrática. Vivenciando na carne o ocaso da ordem aristocrática, mas reconhecendo sua inexorabilidade, o que Tocqueville buscou foi identificar que atores e processos poderiam desempenhar papel semelhante ao que tinham exercido os nobres sobre o rei, na moderação do mando despótico dos governantes em um mundo de iguais.
As breves alusões ao processo histórico feitas acima nos conduzem a refletir sobre as dinâmicas sociais e política que caracterizam a democracia moderna. O próprio estatuto da cidadania pode ser visto como expressão disso. Ao garantir direitos aos indivíduos, o Estado recebe em troca reconhecimento de sua autoridade (Reis, 1998). Claro está que essa garantia de direitos deixava - e de fato ainda deixa - muita gente de fora da comunhão de direitos. Mas no âmbito do Estado nacional esta exclusão não pode ser legitimada já que todos os que vivem sob a autoridade pactada são indivíduos. O estatuto da cidadania que sanciona o pacto entre a autoridade e os que a ela se submetem em troca de direitos também fixa de forma rígida os limites da nacionalidade. A ideia de que só os nacionais podem usufruir direitos é, no presente, um dos grandes desafios que a ordem democrática enfrenta. Enquanto a revolução nas comunicações democratizou o fluxo de informações e tornou em grande parte obsoletas as fronteiras físicas, reações nacionalistas a migrações internacionais põem em xeque os alicerces da democracia, fomentando xenofobia, emergência de partidos antidemocráticos, lideranças salvacionistas.
Outro ponto de tensão contemporânea aguda na esfera democrática diz respeito às múltiplas demandas por reconhecimento presentes tanto no Norte como no Sul. Aqueles que se mobilizam para serem reconhecidos em termos de gênero, raça, cor, religião, ou outras identidades, fazem suas reivindicações enquanto grupamento de pessoas que ao permanecerem atomizadas encontram-se de fato à margem do estatuto da igualdade. A situação corresponde em certa medida ao cenário que Bendix traçou para mostrar como no passado os trabalhadores atomizados tiveram que lutar muito tenazmente para terem reconhecido seu direito à combinação de indivíduos. Isto é, a longa luta pelo direito à moderna representação coletiva expressava o fato de que embora a igualdade moderna reconheça a todos os indivíduos o direito ao voto, na prática o voto dos operários atomizados valia muito menos que o voto dos patrões já que esses controlavam recursos que afetavam o processo eleitoral (Bendix, 1996) e daí a luta pelo direito de representação coletiva.
Claro está que o paralelo entre o direito à combinação de interesses dos trabalhadores e o direito ao reconhecimento social contemporâneo não pretende ser literal. O importante aqui é observar que a democracia como conjunto de princípios universalizantes enfrenta desafios constantes. Não há dúvida que demandas por inclusão e reconhecimento tensionam a ordem democrática que promete universalidade, mas ao fazê-lo termina por ver posta em questão sua estruturação vigente. Com frequência vemos críticas às demandas por reconhecimento invocarem o argumento de que elas fragmentam capacidade de barganha frente ao poder, enfraquecem a organização dos trabalhadores contra o capital, e põem em risco a ordem democrática. Ao contrário de Tocqueville que lamentava o fim da velha ordem, mas reconhecia a inexorabilidade da nova ordem em construção, tais críticas permanecem com os olhos fixos no passado, sem reconhecer que a base de solidariedade que o trabalho propiciava no passado já vem passando por longo período de desestruturação. Ao fechar os olhos à presença do já secular trabalho informal, e mais recentemente cadeias produtivas, home work, uberização etc., as críticas que se ancoram no passado se negam a contribuir para inventar o futuro.
Naturalmente a democracia como conjunto de princípios só ganha vigência através de instituições e procedimentos. Nesse sentido, as questões de engenharia institucional são elementos cruciais para a vigência democrática. Divisão de poderes, xeques e contrapesos, sistemas de representação, regras de participação, o cardápio do arcabouço institucional comporta infinitas possibilidades de composição. Naturalmente, as escolhas aqui não são infinitas e nem se distribuem igualmente por toda parte. As instituições consolidadas em cada contexto refletem fatores variados que incluem o legado histórico institucional de cada sociedade, as transformações estruturais pelas quais elas passam, as contingências com que se defrontam, e as escolhas que fazem seus atores em situações concretas. É desse emaranhado de fatores que se tece o arcabouço político institucional de uma sociedade nacional. Não se trata de perpetuação natural de condições originárias, mas instituições tampouco são construções puramente voluntaristas por parte de quem detém poder. Por isso, para entender as transformações históricas por que passam as instituições democráticas de uma sociedade é necessário examinar cuidadosamente como o passado é visto, interpretado e ressignificado pelos que disputam o poder em um dado momento histórico.
Tendo em vista o acima exposto, decifrar os desafios contemporâneos à institucionalidade democrática requer tomar em conta não apenas o que há de comum nos ataques às democracias vigentes, mas também os arranjos institucionais específicos que estão sendo questionados em seus respectivos contextos. Assim, por exemplo, questionar a lisura do processo eleitoral faz parte da estratégia de contestação das normas democráticas vigentes em diversas sociedades, mas as acusações miram sistemas de votação bastante diferentes entre si, o que coloca a necessidade de respostas diferenciadas aos ataques em curso.
Contudo, se há variação significativa na maneira como o arcabouço institucional é questionado, é importante salientar que há também considerável comunalidade nas manifestações de insatisfação com regimes democráticos e consequente adesão a projetos autoritários. De uma maneira geral, expectativas materiais e simbólicas frustradas por um lado, e manifestações expressivas em favor de pautas de costumes tradicionais e apelos religiosos são componentes que galvanizam apoio a lideranças carismáticas, populismos, promessas de antipolítica, e outras soluções autoritárias. Essa combinação de fatores que remetem a frustrações materiais por um lado, e a pautas culturais por outro, não necessariamente se exclui mutuamente e pode mesmo se retroalimentar.
Frustrações de expectativas, perda de confiança nas instituições democráticas, apelo a valores tradicionais, são componentes relevantes do grande desafio com que se defrontam os sistemas democráticos. Ainda que sejam várias as causas que abalam as democracias contemporâneas, não se pode ignorar que o aguçamento das desigualdades que tem lugar nos anos recentes incide frontalmente sobre a confiança nas instituições democráticas. Desigualdades crescentes, sentimentos de que a voz da grande maioria, assim como de muitas minorias não se faz ouvir tornam difícil a convergência, ainda que mínima, de interesses e sentimentos que possam assegurar a coesão social et pour cause, a confiança na democracia.
Também não se pode negar que a dinâmica econômica das décadas recentes impacta fortemente a crise da democracia (Streeck, 2014). As enormes alterações que ocorrem a partir da era Tatcher/Regan nas transações econômicas e financeiras, nas relações capital/trabalho, e nas capacidades dos Estados nacionais, não apenas penalizaram significativamente os menos favorecidos, mas também reduziram seu poder de voz na engrenagem democrática. Se é verdade que o capitalismo e a democracia liberal são coetâneos, as relações entre eles sofreram repactuações significativas que muitas vezes contribuíram para revigorar os mecanismos democráticos. Contudo, não tem sido esse o caso das transformações impostas pela lógica neoliberal que entronizando a primazia do mercado como regulador das relações sociais limita o espaço que a arena democrática requer para garantir a coesão social.
Da perspectiva genérica e abstrata que comentei dos desafios que democracia enfrenta hoje, corro dois riscos opostos: por uma parte, pode parecer que acredito em soluções genéricas para os problemas em causa; por outra parte, pode parecer que diante dos obstáculos identificados seria inviável o futuro da democracia. Insisto, porém, que nenhuma dessas conclusões pode ser derivada de minhas observações. Não há receitas prontas para salvar democracias, mas tampouco se pode dizer que elas vão sucumbir aos desafios. Estratégias para resgatar princípios, normas, e instituições democráticas dependem da natureza dos problemas concretos a serem enfrentados em cada caso, das oportunidades disponíveis para tanto, e das escolhas de estratégias e táticas.
Sem dúvida, o agravamento das desigualdades é um aspecto central para entender a crise contemporânea da democracia em toda parte. Mas, mesmo nesse caso, é preciso levar em conta as especificidades que a desigualdade apresenta em cada caso. Se a privação de recursos materiais incide com mais força sobre determinadas categorias etárias e raciais, entre outras, as estratégias requeridas têm que ser concebidas como simultaneamente dirigidas a inclusão e reconhecimento. Em contextos em que parcelas significativas da população são de facto desprovidas de acesso aos bens de cidadania, será mister buscar formas inovadoras para dar sentido à ideia de direitos humanos que para parcelas consideráveis da população são vazias de conteúdo.
Sabemos como as democracias morrem, mas não como elas podem ser revigoradas. Contudo, embora sem grandes certezas, sabemos que há recursos para revigorar a democracia. Sabemos que é possível lançar mão de recursos humanos e técnicos para buscar mais transparência no exercício do poder, mais eficácia e eficiência nas políticas públicas, mais participação popular em decisões locais, processos que se traduziriam em ganhos de confiança nas instituições.
Se não existem receitas prontas para responder aos enormes desafios que a democracia confronta, segue sendo pertinente a proposta de apostar na política como a arte de alterar resultados de mercado como propôs Ringen (2006). Nessa perspectiva, o declínio da coesão social para o qual as desigualdades acentuadas concorrem coloca a necessidade de repensar o papel da autoridade política no arranjo democrático, no sentido de garantir voz e vez aos descontentes. Arranjos desse tipo foram feitos em maior ou menor grau na história do capitalismo liberal. Tais soluções geralmente emergiram quando o contingente de descontentes passava a ser percebido como um peso ou um risco potencial para as elites. Os líderes populistas do presente se propõem como patronos das massas insatisfeitas, mas as soluções de inclusão que apresentam são geralmente limitadas à esfera expressiva. Naturalmente repactuações democráticas são lentas, custosas, avançam por tentativa e erro, mas podem lograr avanços. De qualquer forma, sustentar a democracia sempre demandou trabalho constante, e nessa conjuntura em que ela enfrenta tão grandes desafios, a empreitada terá que ser particularmente robusta. Mais ainda, muitos dos desenvolvimentos que são percebidos hoje como deletérios para a democracia podem vir a ser reinterpretados e mobilizados para fazer frente às ameaças correntes. A política continuará sendo a arena onde recursos humanos e tecnológicos poderão ser utilizados de formas inovadoras para renovar a aposta nos valores de justiça e igualdade que dão vida ao ideal democrático.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
02 Jan 2025 -
Aceito
24 Jan 2025