Open-access Vivências e Expectativas de Mulheres Solteiras Habilitadas para Adotar

Experiences and Expectations of Women who were Able to Adopt

Resumo

Este estudo objetivou conhecer a vivência de mulheres solteiras que estão na fila de espera para adoção. Participaram três mulheres com idades acima de 50 anos, boa escolaridade e boas condições financeiras. Foram utilizados um questionário sociodemográfico e uma entrevista. A análise de conteúdo evidenciou que as mulheres se sentiam preparadas para serem mães, afirmando que não precisavam de apoio para o cuidado do filho. As características da criança eram semelhantes às do perfil predominante dos casais adotantes e diferentes do perfil dos jovens elegíveis à adoção, favorecendo a morosidade do processo. São apresentadas propostas de aprimoramento do processo de adoção, como melhoramento no trabalho das equipes técnicas e maior debate quanto às características das crianças.

Palavras-chave:
mães solteiras; monoparentalidade; adoção

Abstract

This study aimed to know the experience and expectations of single women who are in the queue for adoption. Three women aged over 50, with good educational level and high income participated. A sociodemographic questionnaire and an interview were used. Content analysis showed that women felt ready to be mothers, saying that they did not need support for childcare. The characteristics of the child were similar to those of the predominant profile of the adoptive couples and they were different from the profile of the young eligible for adoption, favoring the slowness of the process. Proposals to improve the adoption process, such as improvement in the work of staff and greater debate about the characteristics of children are presented.

Palavras-chave:
unwed mothers; single parenting; adoption

A adoção na interface com as novas configurações familiares é um tema de diversas discussões e debates na sociedade (Costa & Kemmelmeier, 2013; Lira, Morais, & Boris, 2016; Marques & Morais, 2018; Santos, Araújo, Negreiros, & Cerqueira-Santos, 2018). Independente do modelo em que a família adotiva se constitui, a vivência do tornar-se pai e/ou mãe consiste em um momento de grandes expectativas e sentimentos intensos (Costa & Rossetti- Ferreira, 2007; Huber & Siqueira, 2010). Nesse sentido, questões relacionadas à espera por um filho nesse processo - por vezes, difícil - consiste em uma importante temática de pesquisa (Costa & Rossetti- Ferreira, 2007; Huber & Siqueira, 2010).

O processo da adoção tem seu início a partir do momento em que o pretendente preenche uma ficha de inscrição na qual constam os dados de identificação do interessado em adotar, como nome, estado civil, nível de escolaridade, profissão e situação econômica, bem como as características que busca na criança a ser adotada, como sexo, faixa etária e características físicas (Paiva, 2004; Weber, 2003). Após essa etapa, todos os candidatos, independentemente do estado civil, são submetidos a uma triagem realizada por um assistente social e um psicólogo do Sistema Judiciário, na qual são submetidos a uma avaliação psicossocial com entrevistas e visitas domiciliares feitas pela equipe técnica multiprofissional (Brasil, 2009). A fase de espera pela criança se inicia depois da habilitação e aprovação do cadastramento (Brasil, 2009).

A adoção, e a consequente fila de espera, não envolve apenas questões jurídicas e burocráticas, mas também o perfil escolhido pela grande maioria dos pretendentes, ou seja, crianças recém nascidas ou muito pequenas (Machado, Ferreira, & Seron, 2015; Santos, Fonsêca, Fonsêca, & Dias, 2011). Dados do Cadastro Nacional de Adoção (2016) apontam que há muito mais pretendentes à adoção do que crianças aptas para serem adotadas (mais de 40.000 pretendentes para cerca de 9.000 crianças). Contudo, as crianças aptas para adoção não são predominantemente bebês, têm irmãos ou alguma doença ou deficiência, como evidenciam os dados do Cadastro Nacional da Adoção (Cadastro Nacional da Adoção, 2016). Nesse sentido, o processo de adoção na realidade brasileira pode ser considerado longo tanto por questões relativas aos entraves jurídicos quanto pelo desencontro entre o perfil das crianças disponíveis para adoção e o perfil escolhido pelos candidatos, que preferem crianças pequenas, saudáveis e sem irmãos (Cadastro Nacional de Adoção, 2016, Guareschi, Strenzel, & Bennemann, 2007). Nessa perspectiva, na realidade brasileira, a espera pelo filho adotivo tende a ser longa e difícil, pois ainda que os candidatos saibam que estão em uma lista oficial de espera e que serão chamados assim que uma criança estiver elegível à adoção, esse processo tem sido longo e a sensação de muitos é de que nada está acontecendo (Costa & Kemmelmeier, 2013; Huber & Siqueira, 2010; Reppold, Chaves, Nabinger, & Hutz, 2005). Desse modo, durante esse processo, diversos sentimentos podem ser percebidos na vivência das famílias, como ansiedade, medo e insegurança (Costa & Campos, 2003).

A espera, especialmente vivenciada por aqueles candidatos que buscam crianças com perfil menos frequente, além de ser desgastante para alguns adotantes, pode se transformar em sofrimento e gerar inúmeros questionamentos e fantasias para estes (Huber & Siqueira, 2010). Contudo, o Conselho Nacional de Justiça tem buscado alternativas para o melhoramento do processo (Conselho Nacional de Justiça [CNJ], 2017). Segundo o CNJ, o processo de integração do Cadastro Nacional de Adoção e do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas no sistema brasileiro, que se iniciou em algumas comarcas em 2017, promete alterar a forma como a adoção ocorre no Brasil (CNJ, 2017). Essa integração visa a colocar em foco a criança como sujeito principal do processo e integrar as informações de todas as crianças e adolescentes elegíveis para adoção (CNJ, 2017).

O fenômeno da adoção esteve presente em todas as civilizações e vem sofrendo alterações conforme mudam os contextos sociais e legais (Marcílio, 2006), favorecendo o surgimento de novas concepções familiares decorrentes da possibilidade de novas práticas de adoção (Costa & Rosseti-Ferreira, 2007). A partir dessas transformações, pessoas solteiras conquistaram o direito de adotar uma criança (Brasil, 2001) e, desde então, o número de candidatos solteiros, principalmente mulheres, em processos de habilitação para adoção, tem aumentado (Levy & Féres-Carneiro, 2002; Maux & Dutra, 2009). Assim, o percentual de famílias monoparentais que adota vem crescendo no Brasil, sendo que 10% das adoções são realizadas por homens ou mulheres solteiros (Weber, 2011). Contudo, em países desenvolvidos, a adoção por solteiros chega a 30% (Jones & Hackett, 2011; Layne, 2015).

A literatura científica evidencia que foi a partir dos anos 2000 que o número de mulheres que buscavam exercer a maternidade sem um companheiro começou a ser expandido (Golombok, Zadeh, Imrie, Smith, & Freeman, 2016; Layne, 2015; Leão, 2015; Santos et al., 2011). Muitas dessas mulheres, conhecidas como mães solteiras por escolha e mães solo (single-mothers by choice e solo mother), optam por outras prioridades no momento em que, frequentemente, as mulheres se casam e têm filhos e, por vezes, encontram na adoção a possibilidade de concretizar o desejo de ser mãe (Golombok et al. , 2016; Layne, 2015; Leão, 2015). Alguns dos motivos que as levam a adotar são: estar realizada profissionalmente, o medo da solidão, expectativa de dar sentido a uma vida pobre de relações, perda de um filho ou simplesmente o desejo de ser mãe (Levy & Féres-Carneiro, 2002). Nesse sentido, ainda que a maior demanda no processo de adoção seja procedente de casais jovens inférteis, casais com filhos biológicos e casais homossexuais, pessoas solteiras têm manifestado interesse em constituir ou aumentar a sua família por meio da adoção (Andrade, Hueb & Alves, 2017; Schettini, Amazonas, & Dias, 2006).

O processo de adoção é um fenômeno complexo, sendo ainda mais singular quando o adotante é uma mulher que não coabita com um parceiro, tendo que justificar a sua escolha (Leão, 2015). Leão, Dalla-Porta, Pauli, Antoniazzi e Siqueira (2017) apresentaram uma ampla discussão do tema e verificaram muitos dos desafios enfrentados pelas mães solo, como o rótulo de “mães atípicas”, por não terem constituído família antes da maternidade, o enfrentamento do julgamento moral por parte da sociedade e a necessidade de uma rede de apoio social atuante. Por outro lado, um estudo realizado com os filhos de mães solo evidenciou aspectos positivos no fato de ter um cuidador seguro e dedicado ao cuidado e criação dos mesmos, como também nenhuma diferença entre ajustamento psicológico e bem-estar quando comparados a filhos de casais adotivos (Nixon, Greene, & Hogan, 2012).

Estudos têm contemplado a perspectiva dos adotados e/ou adotantes (Baptista, Soares, & Henriques, 2013; Brodzinsky & Roberts, 2011; Jones & Hackett, 2011; Logan, 2010; Macdonald & Mcsherry, 2011; Machado, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2015; Mozzi & Nuernberg, 2016; Reinoso, Juffer, & Tieman, 2013; Sequeira & Stella, 2014), enquanto outros têm buscado compreender questões como a entrega dos filhos para adoção (Brodzinsky & Smith, 2014; Faraj, Martins, Santos, Arpini, & Siqueira, 2016). Contudo, ainda são escassos estudos com enfoque na adoção por mulheres solteiras (Leão, 2015; Leão et al., 2017; Santos et al., 2011). Nesse sentido, esta pesquisa buscou conhecer a vivência e as expectativas de mulheres solteiras que estão na fila de espera para adoção. A escolha por conhecer a vivência de busca pela adoção de mulheres que não coabitam com um parceiro ou parceira está relacionada com o fato de que pouco se conhece sobre essas mulheres, que, em geral, por priorizarem a formação e carreira profissional ou por outros impeditivos, não concretizaram a maternidade através de um relacionamento. Assim, o caráter inovador deste estudo ampara-se na proposta de dar voz àquelas mulheres que, mesmo não possuindo um parceiro amoroso, decidem tornar-se mães por meio da adoção, possibilitando compreender suas vidas no momento da fila de espera.

Método

Delineamento e Participantes

Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório realizado com três mulheres candidatas para adoção em uma cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul, sendo uma amostra formada por conveniência. Os critérios de inclusão foram: estar em fila de espera há pelo menos um ano, não ter filhos biológicos e não residir com um companheiro ou companheira. Foram encontrados 17 processos de mulheres solteiras que estavam aptas para adotar no Juizado da Infância e da Juventude (JIJ) de uma cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul. Todas as mulheres foram contatadas e convidadas a integrar o estudo, das quais três aceitaram participar. Muitas candidatas estavam na fila de espera há um tempo prolongado, não tendo mais desejo pela adoção, mas sem notificar o juizado de sua desistência.

As três mulheres que aceitaram participar do estudo tinham idade entre 50 a 57, ensino superior completo, renda mensal entre quatro a 12 salários mínimos e eram atuantes no mercado de trabalho. O tempo que as participantes estavam na fila de espera variou de quatro a cinco anos e seis meses. A amostra foi constituída por conveniência, sendo que todas as mulheres que atendiam aos critérios de inclusão foram convidadas a participar.

Dentre os motivos que levaram as participantes a buscar pela adoção, estavam: dificuldade de engravidar e infertilidade (retirada do útero). Sobre a configuração familiar das famílias de origem das participantes, constatou-se que as três pertenciam a uma família de configuração nuclear tradicional, formada por homem, mulher e filhos. No período de coleta de dados, uma das mulheres ainda residia com os pais, e as outras participantes residiam sozinhas. Foram-lhes dados os nomes fictícios de Ana, Lia e Vera, para preservar a suas identidades.

Instrumentos e Procedimentos

Para a coleta de dados, os instrumentos utilizados foram: questionário sociodemográfico e entrevista semiestruturada individual. A entrevista foi construída com base em dois pilares: adoção (motivos, decisão e vivência da fila de espera) e rede de apoio social. Cada pilar continha 10 perguntas norteadoras, que possibilitavam elaborações singulares das participantes. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da Universidade Federal de Santa Maria, sob o protocolo número 27295414.7.0000.5346. Foram considerados todos os preceitos éticos que regulamentam pesquisas que envolvem seres humanos, como preservação da identidade da participante e confidencialidade das informações, conforme preconiza a Resolução Nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde (Conselho Nacional de Saúde, 2016).

Após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, o Juizado da Infância e Juventude forneceu uma lista de pessoas solteiras habilitadas para adoção, sendo as mulheres solteiras contatadas e convidadas para a realização da pesquisa. Por telefone, foram explicados os objetivos e os procedimentos do estudo, bem como agendadas as entrevistas em horário definido pelas participantes. Houve dificuldade de acessar as mulheres cadastradas, pois muitas informações estavam desatualizadas. Além disso, outras mulheres já haviam desistido do processo de adoção, pelos mais diversos motivos: espera prolongada (mais de 10 anos), atual ausência de condições físicas para cuidar de uma criança e nascimento de seus filhos biológicos.

Antes de iniciar as entrevistas, as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas foram gravadas, duraram cerca de 1 hora e 30 minutos e foram realizadas na residência das participantes.

Análise dos Dados

Os dados foram analisados a partir da Análise de Conteúdo (Bardin, 2011; Laville & Dionne, 1999), tendo como ponto de partida o significado da adoção para essas mulheres solteiras. Três categorias foram construídas a posteriori a partir de três etapas de análise: pré-análise, exploração do material e o tratamento dos resultados e interpretação.

Resultados e Discussão

Após a análise e interpretação dos resultados, as três categorias definidas foram As características esperadas das crianças, A tarefa de cuidar dos filhos na monoparentalidade e Fila de espera: Sentimentos e fantasias ao longo do processo de adoção.

As Características Esperadas das Crianças

Esta categoria apresenta dados sobre as características esperadas na criança, preenchidas no formulário do candidato à adoção pelas mães solo. A partir desse formulário, as participantes foram convocadas a refletir sobre as particularidades da criança que desejavam adotar, como sexo, idade, cor da pele, estado de saúde, entre outras.

Das características das crianças descritas nos processos, as três mulheres mencionaram o desejo de adotar uma criança do sexo feminino, sendo que duas declararam preferência por crianças brancas e uma pontuou que a cor do adotando era indiferente. A preferência ainda presente entre os candidatos a pais adotantes no Brasil é por um perfil que é minoria se comparado com o perfil das crianças e adolescentes elegíveis à adoção registrados no Cadastro Nacional de Adoção. Atualmente, no cadastro, consta que 73,48% são maiores de 5 anos, 65,85% são negras ou pardas, 58,52% possuem irmãos e 25,68% têm alguma doença ou deficiência (CNJ, 2017). As características selecionadas pelas participantes deste estudo são semelhantes às de candidatos do estudo de Weber (2003), realizado no início dos anos de 2000 no Juizado da Infância e da Juventude de Curitiba, o qual evidenciou que 67% dos adotantes definiram como condição principal uma criança branca, 19% relataram aceitar uma criança até morena clara, e apenas 7% demonstraram não ter preferência quanto à cor da criança. A preferência por crianças brancas ou da mesma cor de pele está relacionada com a intenção de aproximar a criança da família, da mesma forma que a opção por meninas revela um estereótipo passado culturalmente, segundo o qual o sexo feminino é percebido como dócil, frágil e fácil de ser educado (Morelli, Scorsolini-Comin, & Santeiro, 2015). Ademais, o perfil da criança a ser adotada representa a procura por um semelhante, uma familiaridade determinada pela identificação, sendo necessário para a integração da criança na identidade parental e na constituição do sentimento de pertencimento (Machado et al., 2015).

Em relação à idade da criança, as três mulheres optaram por recém-nascidos ou crianças com, no máximo, três anos de idade. Essa escolha foi justificada pelas participantes considerando o desejo de vivenciar os primeiros meses de vida da criança e os desafios que um bebê apresenta. Corroborando esse dado, a literatura ainda apresenta a existência de uma crenças sobre a dificuldade de construir vínculos com crianças maiores e a influência das experiências anteriores da criança maior no processo de adaptação à nova família (Rossetti-Ferreira et al., 2008; Merçon-Vargas, Rosa, & Dell’Aglio, 2016; Queiroz & Brito, 2013). Essa escolha pode levar a um período de espera prolongado, considerando que a entrega de um bebê para adoção como também a destituição do poder familiar no caso de um bebê constituem-se em eventos pouco frequentes (Faraj et al., 2016). Mesmo que atualmente a legislação apresente diretrizes que acolham e orientem as gestantes que queiram entregar o seu bebê em adoção, estudos recentes apontam que ainda há despreparo dos profissionais da saúde e estigma social a serem superados (Faraj et al., 2016; Faraj, Machado, Siqueira, & Campeol, 2017; Menezes & Dias, 2011). No caso da destituição, a legislação brasileira determina que haja um período de até dois anos para que a família de origem e a família extensa possam estar aptas a cuidar de uma criança (Brasil, 1990, 2009). Nesse sentido, Siqueira (2012) destaca que as alterações propostas no Estatuto da Criança e do Adolescente em 2009, ao mesmo tempo que limitaram a dois anos o tempo de acolhimento institucional, podem retardar a destituição do poder familiar, uma vez que as famílias possuem esse período para se reorganizarem para receber seu filho novamente. Quando esse período é finalizado, a criança já está maior e com menores chances de ser adotada.

As participantes demonstraram preocupação com as condições de saúde da criança adotada, sendo que nenhuma das mulheres manifestou interesse em adotar crianças com doenças tratáveis ou não: “Ali no caso da doença, eu optei por saúde. Eu achei ali um pouquinho importante, sou uma pessoa que trabalho na área que é a hospitalar, então sou uma pessoa que lido muito com doença todo dia” (Ana). Essas reflexões foram encontradas em estudo com casais em fila de espera para adoção (Huber & Siqueira, 2010), o que demonstra que esta parece ser uma preocupação frequente.

Outro aspecto mencionado por uma das mulheres refere-se à possibilidade de alterações que podem ocorrer ao longo do processo da adoção nas respostas marcadas no formulário do candidato à adoção. Em decorrência da espera prolongada pelo filho, uma participante solicitou alteração no pedido de adoção com o intuito de ampliar as possibilidades do perfil da criança adotada: “Primeiramente eu coloquei, eu acho, até um ano, depois eu troquei pra três. Alterei duas vezes, porque estava demorando muito, daí, eu fui lá e pedi duas crianças. Agora coloquei uma criança só” (Vera). Essas alterações realizadas no decorrer do processo de adoção pela participante estão relacionadas com a intenção de efetivar a adoção de maneira mais rápida. Tais circunstâncias podem modificar a maternidade inicialmente idealizada, pois as escolhas alteram-se de modo a se ajustar à maternidade possível (Amin & Menandro, 2007). Além disso, essas mudanças podem estar associadas ao medo, insegurança ou ansiedade frente à demora da adoção se concretizar. Por outro lado, duas mães optaram por não realizar alterações no processo de adoção, o que revela semelhança com a maioria dos candidatos à adoção (Leão, 2015). Nesse sentido, certas características desejadas na criança adotada podem fazer com que a espera seja muito maior, pois essas características não estão em sintonia com as características das crianças elegíveis para adoção. Ademais, a adoção deve ser conduzida pelo melhor interesse da criança, respeitando a idéia da Doutrina da Proteção Integral, de encontrar pais para filhos e não o contrário (Costa & Rossetti-Ferreira, 2007, Machado et al., 2015).

A Tarefa de Cuidar dos Filhos na Monoparentalidade

Esta categoria apresentou dados sobre o que as mulheres pensavam sobre a tarefa de cuidar de uma criança sem um parceiro. As participantes mencionaram que essa não seria uma tarefa difícil, sendo que Ana sinalizou que já tinha experiência de cuidar de outras crianças: “Eu encararia muito bem, pois eu já encarei esses momentos de cuidado, cuidar de crianças, o dia a dia. Eu acho que não teria dificuldade. Essa parte aí eu acho tranquilo” (Ana). Em contrapartida, as outras duas mulheres mencionaram que estavam no final de suas carreiras profissionais, o que permitiria dedicar mais tempo para o cuidado da criança. A partir desse dado, percebe-se que as participantes se sentiam prontas para exercer a maternidade, com a intenção de dedicar-se totalmente a esse papel. Elas pareciam atribuir à maternidade o significado de suas vidas, não precisando da ajuda de outras pessoas, o que sugere que essas mães estavam seguras para a tarefa de cuidar do filho: “A criança, pra mim vai ser a minha vida” (Vera). Pode-se compreender esse dado a partir de três aspectos. O primeiro está relacionado ao fato de que essas mulheres parecem sentir-se onipotentes com relação a maternidade e podem estar idealizando a maternidade ao demonstrar que são suficientes para o filho, além de um evidente investimento delas na adoção. Essa idealização e intenso investimento são processos frequentes em casos de mulheres que apresentam um grande desejo pela maternidade e que vivenciam algum tipo de impedimento (Cezne, Levandowski, & Biazus, 2011). Após a chegada do filho, essas mulheres tendem a equilibrar as expectativas idealizadas e a realidade. Outro aspecto que pode explicar a segurança transmitida por elas é o seu próprio perfil: sendo mulheres com boa escolaridade, boas condições financeiras e maduras, elas possuem um senso de competência para a maternidade também. E, por fim, a segurança em assumir o cuidado do filho sem ajuda pode estar associada à expectativa social, já que o papel materno é uma função feminina valorizada na sociedade ocidental (Santos & Rocha-Coutinho, 2010). O amor materno é uma construção social que se consolidou em certo momento da história, o qual determina total dedicação da mãe em prol de seus filhos, em decorrência da percepção de como deveriam ser as famílias. Assim, é necessário considerar a influência do contexto histórico para a constituição do ser mãe, principalmente no que diz respeito a assumir responsabilidades de cuidado com o filho (Rosa, Melo, Boris, & Santos, 2016).

As mulheres entrevistadas inclusive planejavam solicitar aposentadoria quando o filho chegasse: “Eu estou no final da minha carreira profissional. Então, eu estou em um processo, assim ó, aguardando para que chegue a criança para eu pedir minha aposentadoria” (Vera); “Falta só mais dois anos eu já me aposento. Vou ter mais tempo ainda” (Lia). Esse plano sugere que ter um filho estava relacionado a renúncias profissionais, já que, enquanto esperavam na fila de adoção, ainda permaneciam nos seus trabalhos. Esse planejamento remete a um alto investimento na função da maternidade.

Outro aspecto visualizado no estudo está relacionado à percepção e ao acionamento da rede de apoio, elemento relevante para a tarefa de cuidar e para o desenvolvimento dos filhos, em especial em famílias monoparentais. A rede de apoio social é conceituada como um conjunto de pessoas significativas que realizam trocas com o indivíduo, atuando como um fator de proteção e mitigando os efeitos dos fatores de risco a que o indivíduo está exposto (Britto & Koller, 1999). Nesse sentido, nenhuma das participantes mencionou a necessidade de contar com outras pessoas que fazem parte de sua rede de apoio social e afetivo. Esse dado é um aspecto crítico a ser debatido à luz da literatura científica. Ao mesmo tempo em que estudos com famílias monoparentais indicaram que há sobrecarga e maior desgaste psicológico nas mulheres chefes de família (Cúnico & Arpini, 2014; Heck & Parker, 2002; Piccinini, Marin, Alvarenga, Lopes, & Tudge, 2007; Santos et al., 2011) e que a função socializadora que outros indivíduos exercem é fundamental para o desenvolvimento de uma criança (Heck & Parker, 2002; Santos et al., 2011), outros estudos apontaram que mães adotantes que não tinham relacionamentos conjugais envolviam-se mais com os filhos e ofereciam um lar estável aos mesmos (Golombok & Badger, 2010; Weber, 2011). Assim, é possível que a rede de apoio tenha uma função diferente para essas mães, em comparação a outras mães chefes de família.

Fila de Espera: Sentimentos e Fantasias ao longo do Processo de Adoção

Esta categoria reuniu dados sobre as dúvidas, os sentimentos e as fantasias vivenciadas por essas mulheres enquanto esperavam pelo filho adotivo. No processo de adoção, após os candidatos passarem pela triagem e pelas avaliações com psicólogos e assistentes sociais, inicia-se o momento de espera pelo filho. As entrevistadas declararam que essa espera na fila de adoção pode ser longa e difícil: “É difícil, é bem difícil, é muito tempo esperando, esperando... estou com quartinho pronto, sapatinho, roupinha lavada, tudo! Até hoje eu não entendo como funciona a fila” (Lia); “Estive várias vezes no fórum. Tenho ido agora nesses últimos meses, desde novembro. E daí eu estou saindo de lá sem informação alguma, em novembro eu estava em terceiro lugar e estou sem informação. Isso é ruim, muito ruim” (Vera); “Meio ansioso sabe, eu gostaria de ter ela nos meus braços, de educá-la. Sabe aquela troca de amor e educação? Carinho, aquelas coisas gostosas de mãe e filha. São cinco anos perdidos, anos que nós poderíamos já ter vivido” (Ana).

Neste estudo, as mulheres entrevistadas já estavam há mais de quatro anos habilitadas para adoção, sendo esse prolongado período relacionado ao perfil escolhido por elas, como já foi problematizado. Os resultados do estudo de Gondim et al. (2008), envolvendo dez casais na fila da adoção, também afirmou que o processo de adoção, ainda que seja bastante desejado individualmente, é assinalado por preconceitos, dificuldades e carência de acompanhamento psicológico no decorrer do processo. A burocracia da espera para adoção pode resultar em uma desmotivação para seguir com o processo, e há, ainda, a carência de incentivo e motivação para adotar (Costa & Kemmelmeier, 2013; Silva, Mesquita & Carvalho, 2010). Esse tempo de espera é vivenciado com muita ansiedade e com o sentimento de que é um tempo perdido, de que momentos e interações já poderiam ter sido vividos. Tal como numa gestação, é esperada a vivência de ansiedade, contudo, na espera pela criança adotiva, esses sentimentos negativos podem ser demasiadamente estressores e desencadear dificuldades psicológicas. A literatura menciona um fenômeno chamado gestação adotiva, vivenciado pelos pais adotantes durante a espera pelo filho adotivo (Reppold et al., 2005). Esse fenômeno é singular e sutil, pois não ocorrem mudanças no corpo da mulher e não é visível aos olhos dos outros. Pelo contrário, é somente simbólico e suscita, em consequência dessas particularidades, mais ansiedade. Cabe ressaltar que essa gestação não tem tempo determinado para se efetivar, podendo durar de meses a anos (Reppold et al., 2005). Gestar simbolicamente é se organizar para a chegada do filho, sonhar, pensar e fantasiar sobre a função que irá exercer (Morelli et al., 2015).

Além disso, as participantes mencionaram dúvidas sobre como ocorre o processo de adoção por parte do Juizado e sobre a escassez das informações repassadas. Tais dúvidas referiam-se à idoneidade do processo da adoção e à fantasia de que estavam sendo enganadas. Esse dado contrapõe os achados de Costa e Campos (2003), os quais encontraram relatos de famílias que denominaram o processo de adoção através da Vara da Infância como transparente, que produz um sentimento de segurança para aqueles que adotam e para os adotados.

Outro ponto destacado pelas participantes estava relacionado aos cursos de capacitação para os adotantes: “Só teve um encontro que eles chamaram de 'capacitação para adotar', mas um encontro é muito pouco. Achei que ia ter mais palestras sobre adoção” (Lia); “Acho que deve haver mais encontros para que a gente possa ler mais sobre adoção, outros assuntos sobre a adoção, veja mais vivências de outras pessoas que adotaram, outros assuntos sobre os filhos adotados, dificuldades que houveram com eles”(Ana); “A gente vai aprendendo junto com o processo. Eu digo, é um processo, uma evolução de tudo. Nós pensávamos que, na lista da adoção, está toda programada, toda sob controle e não está. Então, todo mundo está se preparando junto” (Vera). A preparação é preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) e deve ser oferecida pela Justiça da Infância e Juventude, segundo a Lei 12.010 de 2009. Nessa preparação, cada Vara da Infância ou Grupos de Apoio à Adoção pode acrescentar leituras especializadas na temática da adoção, como também promover espaços de discussão e acolhida de questões que envolvem a adoção.

Além de disponibilizar textos especializados, Souza e Casanova (2012) ressaltam a importância de espaços de diálogo com os candidatos à adoção. Se for uma pessoa solteira, a conversa poderá ser realizada com seus familiares, que, nessa situação, também estarão adotando um novo membro na família. Essa conversa refere-se à análise do que é adoção, o papel dos adotantes até os motivos que levam a constituir uma família. São nesses possíveis espaços que surge a oportunidade de desmistificar o medo relacionado aos aspectos hereditários que a criança adotiva pode trazer consigo (Sequeira & Stella, 2014). A participação em grupos de apoio à adoção se apresenta positiva e pode colaborar para a prevenção de problemas e redução da ansiedade, presentes no processo de adoção, bem como beneficiar a interação entre as pessoas que estão vivenciando a mesma situação de espera (Gondim et al., 2008). Ademais, tende a proporcionar o compartilhamento de experiências entre seus membros e possibilita o estreitamento dos laços dessa importante construção da filiação (Andrade et al., 2017).

As participantes afirmaram que o processo de adoção estava causado ansiedade e desgaste psicológico, pois exige a realização de inúmeras entrevistas com profissionais, avaliações e constantes conversas com as equipes do juizado. Para enfrentar esse desgaste, duas mulheres procuraram o apoio de profissionais da saúde mental, como psicólogo e psiquiatra. O apoio psicológico e psiquiátrico foi apontado por elas como fundamental para a sua saúde mental nessa longa espera, uma vez que os encontros de capacitação não estavam ocorrendo como elas esperavam. Nesse contexto, a importância do suporte profissional surge como um momento privilegiado no sentido de oferecer apoio emocional (Scorsolini-Comin, Amato, & Santos, 2006), sendo destacada a importância não somente do acompanhamento psicológico e psiquiátrico individuais, mas também de grupos de apoio à adoção em que os adotantes sintam-se acolhidos e possam compartilhar suas ansiedades e dúvidas. Ainda, a busca por profissionais da saúde sugere que elas possuam recursos psicológicos para buscar ajuda quando necessário.

Considerações Finais

O presente estudo apresentou valiosas informações sobre as mulheres que estão na fila da adoção, o que possibilitou conhecer as suas características, expectativas e os sentimentos que permeaim o processo de decisão e espera por um filho adotivo. As participantes do estudo eram mulheres maduras, com boa escolaridade, boas condições financeiras e estavam na etapa final de suas carreiras profissionais. Para elas, a maternidade parecia um passo natural no curso de suas vidas. Assim, as participantes cumpriram rigorosas regras da legislação, bem como se submeteram a critérios subjetivos e objetivos para atender a todos os pré-requisitos estabelecidos.

No que tange às características desejadas na criança a ser adotada, ficou evidente que o perfil selecionado por essas mulheres é semelhante ao perfil definido por outras pessoas de diferentes configurações familiares, o que colabora com a morosidade do processo adotivo, pois esse perfil não condiz com o de crianças elegíveis à adoção. As crianças elegíveis nas instituições de acolhimento, geralmente, não são bebês e, em parte, são de pele escura, portadoras de necessidades especiais ou de doenças crônicas e estão junto com seus irmãos (Machado et al., 2015; Noal, Neiva, & Silva, 2007). Considerando que a legislação preconiza que se deve evitar separar grupos de irmãos, destaca-se a importância do trabalho feito pelas equipes técnicas dos acolhimentos para promover adoções conjuntas. Esse dado suscita duas considerações. A primeira é a evidente necessidade de um debate amplo que minimize os mitos associados à adoção de crianças maiores e adolescentes, favorecendo as adoções tardias. O segundo aspecto refere-se à legislação que deve ser seguida considerando o melhor interesse da criança. Em casos em que as famílias biológicas já apresentem evidências de dificuldades de cuidar dos filhos, como presença de fatores de risco e recorrência de situações de violação dos direitos, uma avaliação realizada pelo sistema de justiça poderia abreviar o período de institucionalização de crianças pequenas que possuem mais chances de serem adotadas. Esses dois aspectos constituem-se em estratégias para diminuir o tempo prolongado de espera.

Os resultados deste estudo também evidenciaram a necessidade de efetivar a legislação e criar espaços de acolhida aos adotantes em espera, em que possam abordar os sentimentos advindos do desgastante processo de adoção, em que possam manifestar suas opiniões, trocar experiências e ouvir uns aos outros. Embora a legislação (Brasil, 2009) preveja um trabalho de capacitação para aqueles que estão na fila para adotar, constata-se que, na cidade pesquisada, esse procedimento ocorre esporadicamente e que as mulheres candidatas, após passarem pela avaliação, ficam na fila de espera, às vezes, por muito tempo, sem nenhum tipo de acompanhamento. Esse acompanhamento poderia ser ainda mais importante para as mulheres que não possuem um parceiro ou parceira, pois pode contribuir para a ampliação e o fortalecimento de suas redes de apoio. Dessa forma, dentre as implicações deste estudo, considera-se que os dados apresentados podem reforçar a necessidade de debates em âmbito social e jurídico sobre a adoção, promovendo espaços de reflexão e aprendizagem para que as mães que se encontram na fila de espera para a adoção percebam esse período como algo comum a todos que se encontram nessa situação e não como um problema específico devido à condição peculiar da adoção.

Os resultados encontrados demonstram a complexidade do fenômeno da adoção, o que confirma a necessidade do desenvolvimento de mais estudos que abordem esse tema. Por fim, acredita-se que há muito o que avançar em termos de decisão pelo perfil do filho adotivo e quanto à necessidade de aprimorar os processos de destituição do poder familiar de crianças em situação de violação de seus direitos. Esse aprimoramento pode ocorrer ampliando a discussão sobre o melhor interesse da criança em contraste com a tendência de manter a criança em suas famílias de origem, que, por vezes, possuem dificuldades para garantir os direitos de seus filhos e para alterar situações não favoráveis para o seu cuidado.

Deve-se considerar que este estudo foi realizado com três mulheres, dos 17 processos que tramitavam na Vara da Infância e da Adolescência de uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. Todas as participantes trabalhavam, sustentavam-se e tinham condições de dar conta economicamente de uma criança. Sugere-se que estudos futuros sejam realizados com participantes de diferentes níveis socioeconômicos. Além disso, sugere-se que outras pesquisas incluam não apenas mulheres, mas também homens, a fim de investigar quais são suas impressões sobre a paternidade através da adoção. Por fim, recomenda-se, ainda, que estudos longitudinais sejam realizados para que o fenômeno possa ser investigado a partir de uma perspectiva desenvolvimental.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2017
  • Revisado
    03 Out 2018
  • Aceito
    26 Jun 2019
location_on
Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, 70910-900 - Brasília - DF - Brazil, Tel./Fax: (061) 274-6455 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: [email protected]
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro
OSZAR »